Convido o leitor a uma viagem por tradições milenares da humanidade.
Não será uma viagem trivial. Quero explorar do mais remoto ao mais recente, juntando elementos aparentemente desconexos para - assim espero - revelar ao menos alguma fagulha de sentido. Serão questões grandes demais para serem resolvidas em textos tão curtos, obviamente; mas, se estes textos servirem como ponto de partida para aprofundamentos futuros (e por gente muito mais qualificada do que eu), já me darei por imensamente satisfeito.
Esta será a primeira parte de, a princípio, uma série de apenas dois textos. Talvez acabe se tornando em algum momento uma trilogia; mas, por ora, quero abordar este grande tema - “O Sentido Espiritual da Modernidade” - a partir de duas facetas: a) neste primeiro momento, quero tratar, de forma mais geral, do Cristianismo dentro da ideia tradicionalista de que vivemos na Kali Yuga: será o momento em que procurarei explicar: (i) em que consiste a ideia das idades da Terra; (ii) o que é a Kali Yuga, ou a quarta idade; e (iii) em que medida poderíamos compreender a revelação cristã nesse grande esquema; e b) num segundo texto, pretendo descer a minúcias da modernidade e da pós-modernidade, investigando, com base nas noções exploradas no primeiro texto, qual o seu sentido espiritual profundo.
Como o leitor já está provavelmente acostumado, não será uma investigação convencional. Muitos cristãos possivelmente se verão incomodados; mas, pelo menos a mim, é apenas por esse tipo de confrontação com outras tradições - sem cair na tentação simplória de demonizá-las - que o Cristianismo, a meus próprios olhos, se fortalece.
Dito isso, vamos adiante.
Os povos e as idades da humanidade
Acredito que qualquer pessoa com alguma curiosidade sobre assuntos espirituais já tenha deparado com a ideia de que, em algum tempo remoto, existiu uma civilização atlante. Os tradicionalistas, na linha de René Guénon, tendem a alinhar-se a essa linha de pensamento - ainda que não, certamente, em suas roupagens new age tão comuns mais recentemente.
De fato, podemos dizer, em linhas muito breves e gerais, que para Guénon houve, anteriormente à atual humanidade, outras “humanidades” ou “raças”, destacando-se algumas que, grosso modo, podemos assim descrever: (i) Hiperbórea: primordial, relacionada a uma humanidade polar, de caráter essencialmente espiritual e não materializado. Associa-se ao “Polo Norte” espiritual, à origem primordial da tradição; (ii) Civilizações pré-atlânticas: posteriores à humanidade hiperbórea, correspondem a fases em que se começa a experimentar uma maior materialização. Fala-se pouco nos escritos tradicionalistas, por exemplo, em “Lemúria” - ao menos no que é de meu conhecimento -, mas a aceitação da ideia de uma humanidade correspondente me parece bastante clara; (iii) Atlântida: imediatamente anterior ao atual estado da humanidade e simbolizada, na visão de Guénon (evidentemente não muito cristã), por Adão (ver a respeito seus textos “O Lugar da Tradição Atlante no Manvantara” e “Alguma Observações sobre o Nome Adão”, ambos publicados em Formas Tradicionais e Ciclos Cósmicos). A civilização atlante, embora já fortemente materializada, era ainda depositária de uma grande tradição espiritual, mesmo que de maneira reflexa ou secundária. Sua decadência e extinção são simbolizadas biblicamente pelo dilúvio, seguindo-se a dispersão de remanescentes espirituais para diversas partes do mundo - como o Egito, por exemplo, que posteriormente se perderia da tradição, diz Guénon, pela miscigenação.
(Há uma explicação muito melhor de tudo isso no capítulo III do livro René Guénon Revelado, do Victor Bruno, que também tem uma Newsletter aqui.)
A passagem de uma humanidade a outra se dá ao ritmo de uma profunda involução ou materialização. A atual humanidade estaria já na quarta idade, a Idade do Ferro ou, na doutrina hindu, a Kali Yuga. Em essência, isso significa que, por força desse grande ciclo cósmico, a humanidade atual vive num período de especial afastamento do polo espiritual da existência e um crescente mergulho na matéria.

Na visão de Guénon, a dualidade espírito-matéria aparece muitas vezes como uma oposição radical, de modo que esse mergulho na matéria é encarado como fundamentalmente mau (o que, como o leitor deve saber, trata-se de uma noção bastante alinhada aos gnosticismos de que o Cristianismo sempre foi fortemente crítico - e voltarei a este ponto adiante). Escreveu no primeiro capítulo de A Crise do Mundo Moderno:
A doutrina hindu ensina que um ciclo humano, ao qual dá o nome de Manvantara, é dividido em quatro períodos que marcam as etapas ao longo das quais a espiritualidade primordial vai se obscurecendo gradualmente; esses são os mesmos períodos que as antigas tradições do Ocidente chamaram de Idades do Ouro, da Prata, do Bronze e do Ferro. Estamos agora na quarta idade, o Kali-Yuga ou "idade das trevas", e já estamos nela, segundo se diz, há mais de seis mil anos, ou seja, desde um tempo muito anterior a qualquer conhecido pela história “clássica”. […]
O desenvolvimento de qualquer manifestação implica necessariamente um afastamento gradual do princípio do qual ela procede; partindo do ponto mais elevado, ela tende necessariamente para baixo e, como acontece com os corpos pesados, a velocidade de seu movimento aumenta continuamente até que finalmente atinge um ponto em que é detida. Essa queda poderia ser descrita como uma materialização progressiva, pois a expressão do princípio é pura espiritualidade.
Não apenas estamos na Kali Yuga: estamos em suas fases finais e especialmente tenebrosas. Guénon afirma que a tendência ao materialismo teve um primeiro forte impulso a partir do século VI a.C., mais ou menos no ponto em que começam os nossos relatos históricos mais precisos. No Ocidente, a tradição filosófica grega já marcava um afastamento em relação ao espírito, que se veria intensificar no curso dos séculos. O Judaísmo, por outro lado, também se afastava do espírito original. E o Cristianismo teria sido capaz, séculos adiante, de dar novamente um sentido espiritual às regiões em que predominou até aproximadamente o século XIV, quando se iniciaria um novo período de decadência, cujo paroxismo é a modernidade.
Devo confessar que há tempos entendo que este é um tema fascinante. Mesmo quando minha visão era muito mais ingênua, gostava de pensar em tempos idos em que civilizações misteriosas ocupavam a Terra, deixando apenas alguns vestígios - monumentos ou tesouros que a arqueologia aos poucos consegue redescobrir - reveladores (mas só um pouco: sempre permanece largo espaço para o ceticismo nesses assuntos) de uma grandeza de todo perdida. Há um poder de enorme fascínio nisso tudo: quando li Guénon pela primeira vez, este foi um ponto de sua obra que me cativou de imediato.
Concessões tradicionalistas à modernidade
Os próprios tradicionalistas, embora ferrenhos críticos da modernidade - tendo como fundo filosófico justamente a ideia acima exposta, sobre o afastamento espiritual que caracteriza o atual ciclo -, admitem, aqui e ali, seu valor.
A primeira razão é óbvia: trata-se de um ciclo necessário e, portanto, fundamentalmente de um plano divino inexorável. A Kali Yuga deve existir. A modernidade deve existir. O próprio Guénon, em sua mais articulada e ferrenha crítica à modernidade - em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos -, reserva algumas considerações, nos capítulos finais, sobre o caráter inescapável, e portanto necessário, deste período.
Encontramos, noutros textos tradicionalistas, referências à passagem bíblica sobre os trabalhadores da última hora. Viveríamos a “undécima hora”, os momentos que antecedem o fim do grande ciclo (Manvantara). Isso não significa, porém, que as possibilidades espirituais não existam; pelo contrário, elas são em alguma medida facilitadas, em razão das atuais circunstâncias tenebrosas. Os trabalhadores das “primeiras horas” precisavam trabalhar - ou seja: produzir frutos espirituais - ao longo de todo o dia para alcançar a glória. A nós, da última hora, apenas se pede um pouco de trabalho para a mesma recompensa.
Aqui vemos, na perspectiva tradicionalista, um valor espiritual da modernidade - ainda que diluído e relativo.
Tradicionalismo e Cristianismo
Já disse acima que a cosmovisão guénoniana tem traços bastante gnósticos, no mau sentido do termo. Há uma divisão bastante enfática entre o espiritual e o material - ou entre, na linguagem mais propriamente guénoniana, a qualidade e a quantidade. Quanto mais quantidade, menos qualidade, diz Guénon. O mundo moderno caracteriza-se por um mergulho na quantidade, o que se dá em detrimento da qualidade.
Essa distinção enfática se reflete, no campo religioso, na diferença entre as dimensões esotérica (ou propriamente espiritual) e exotérica (ou exterior, mais rígida, institucional e dogmática, e, portanto, menos espiritual). Guénon aplicava tais conceitos às religiões como um todo, enxergando a distinção de maneira muito clara, por exemplo, no Islamismo. Quando tais conceitos eram transpostos ao Cristianismo, porém, as coisas se tornavam enormemente complexas, e em linhas gerais defendia Guénon que o esoterismo, presente no Cristianismo até por volta do século XIV, acabou por perder-se quase completamente, buscando refúgio em ordens iniciáticas alheias à Igreja.
Não preciso dizer que é uma ideia profundamente problemática sob o prisma cristão. De qualquer forma, houve tradicionalistas que se opuseram à visão guénoniana de uma separação cristã entre esoterismo e exoterismo. Schuon é provavelmente o mais conhecido exemplo, mas me agrada particularmente a posição de Jean Borella - especialmente em suas ponderações sobre o simbolismo bíblico do rompimento do véu do templo após a morte de Jesus Cristo.
Com efeito, para Borella o rompimento do véu marca a distinção entre a tradição cristã e outras, como, por exemplo e como dito, o Islamismo. Na tradição islâmica, há uma separação marcada entre o exoterismo e o esoterismo, entre as leis e a mística, entre o componente exterior da religião e o componente interior. No Cristianismo, porém, a separação inexiste: o caminho é precisamente o mesmo para todos. O que pode mudar é o nível de aprofundamento da mesma vivência cristã. Diz Borella em Guénonian Esoterism & Christian Mystery:
A morte de Cristo constitui, portanto, um evento único e decisivo, que transforma completamente a economia da salvação. Claramente, traz o significado de uma ruptura com a economia antiga e universal que dividia os graus de conhecimento sagrado e participação na graça divina de acordo com a distinção entre as ordens exotérica e esotérica... Essa transformação completa da economia da tradição é explicitamente simbolizada pelo rasgar do véu e concretizada pela morte de Cristo. Está inscrita na natureza última da Nova Aliança.
Ao romper-se o véu do templo, rompia-se o muro a separar o esoterismo e o exoterismo. Ou seja: os mistérios mais profundos, até ali reservados apenas a uma pequena elite esotérica (e os tradicionalistas de forma geral, diga-se, mesmo - ou especialmente - de linha schuoniana, seguem crendo-se pertencentes a tal elite), tornavam-se, pela morte de Cristo na cruz e sua ressurreição, acessíveis ao mundo.
Ou em outros termos: a qualidade não mais se opunha ferrenhamente à quantidade. Qualidade e quantidade, em Cristo, podem harmonizar-se.
Guénon e a Ortodoxia ignorada
Eu tenho o sério palpite - um “educated guess”, na expressão em inglês, mais exata neste caso - de que um gravíssimo problema de Guénon, ao abordar o Cristianismo, foi ignorar solenemente (ou rejeitar deliberadamente, talvez: não sei afirmar qual foi o caso) o Cristianismo Oriental, especialmente a tradição ortodoxa.1
Em seus escritos, Guénon deixar claro que o Cristianismo verdadeiramente tradicional foi aquele que teve início com o reinado de Carlos Magno, na passagem do século VIII ao IX d.C. Lemos, por exemplo, em A Crise do Mundo Moderno:
Para nós, a verdadeira Idade Média se estende desde o reinado de Carlos Magno até o início do século XIV, data em que teve início uma nova decadência que tem continuado, através de várias fases e com ímpeto crescente, até o presente.
Mas, se analisamos a narrativa oriental-ortodoxa - tomemos um John Romanides ou um Christos Yannaras, por exemplo -, Carlos Magno não marcou um início do Cristianismo tradicional, e sim o início do rompimento do Cristianismo ocidental em relação ao Cristianismo original.
Não quero aqui tomar lado em polêmicas. Mas o fato é que Guénon, ao estudar a tradição cristã, apenas voltava seu olhar ao Cristianismo ocidental, aquele cujo marco inicial parece mesmo, em boa medida, relacionado a Carlos Magno, ignorando solenemente (ou rejeitando deliberadamente) toda a tradição cristã oriental. Isso explica muita coisa. Em especial, explica por que Guénon, ao buscar a suposta dimensão esotérica do Cristianismo - lembremos que para ele tal dimensão existia -, não recorria à Filocalia, ao hesicasmo e aos Padres da Igreja de modo geral (o que seria muitíssimo mais natural e lógico), mas buscava, por um lado, em ordens iniciáticas e afins; e, por outro, em teorias sobre uma suposta origem puramente esotérica do Cristianismo, que posteriormente viria a se “exoterizar”.
Isso é de importância inestimável para a compreensão do pensamento tradicionalista em seu todo. Para Guénon - e muitos de seus sucessores, em maior ou menor medida -, o esoterismo foi, é e sempre continuará sendo uma dimensão da religião reservada a uma pequena elite. O texto de Borella, neste ponto, é de uma precisão cirúrgica, pois detecta justamente a falha central de Guénon em sua abordagem relativa ao Cristianismo. Para Guénon, o véu do templo jamais se rompeu. Sempre houve e sempre haverá uma dimensão esotérica, secretíssima, elitíssima, que Guénon buscou efetivamente em ordens iniciáticas frequentemente opostas à Igreja, caindo, obviamente, no terreno do mais absoluto fracasso, pois sua intenção mesma era impossível de ser realizada em razão da natureza do Cristianismo, essencialmente oposta à existência de ordens esotéricas reservadas às elites espirituais.
Restava-lhe, então, uma religião que de fato se alinhasse à sua visão sobre o esoterismo e o exoterismo, o que encontrou, enfim, no Islã.
Hesicasmo e esoterismo
Se quisermos forçar um enquadramento do Cristianismo no esquema guénoniano, podemos dizer que o esoterismo verdadeiramente tradicional apenas poderia ser encontrado no seio da própria tradição. Talvez tenha havido de fato - esta é a tese de Guénon - algo assim no curso da Idade Média, ao menos até o combate e a extinção dos Templários por Filipe, o Belo (este é o marco do início da decadência, no século XIV, para Guénon). Mas, mesmo que tenha havido algo desse tipo, o certo é que a mera existência de uma ordem elitista e iniciática dentro dos muros da Igreja seria contrária ao espírito do Cristianismo. O véu do templo se rasgou.
O hesicasmo tem um método que se assemelha àquele dos círculos esotéricos. O esoterismo é, em sua essência, supra-racional, e o hesicasmo pretende justamente ir além da mente racional, uma vez que seu foco está no silêncio do coração. No entanto, esta característica que poderíamos dizer semelhante ao esoterismo sufi, por exemplo, não faz do hesicasmo fundamentalmente similar ao esoterismo sufi, ou a qualquer esoterismo. Isso porque há um traço distintivo claro e óbvio demais para ser negligenciado: o hesicasmo jamais foi patrimônio exclusivo de uma pequena elite - os fariseus, na imagem evangélica, que roubam a chave da gnosis -, mas foi, desde os primeiros séculos, como o demonstram os escritos dos Padres da Igreja, patrimônio do Cristianismo em seu todo, das mais altas hierarquias aos mais comuns dos fiéis.
O simbolismo do Crucificado
Para Guénon, há uma oposição frontal entre espírito (ou qualidade) e matéria (ou quantidade).
Jesus Cristo, porém, é o próprio Deus que redime a humanidade ao ser pregado à brutalidade mais absoluta da matéria. A madeira, símbolo claríssimo da vida concreta, material, cortada em forma de cruz, mais um símbolo milenar do mundo material, com suas infinitas dualidades.
A crucificação de Cristo é o símbolo mais claro e fundamental da quantidade redimida pela qualidade.
O Cristianismo, muito se diz, jamais negou a matéria. Pelo contrário: abraça a matéria até o ponto de elevá-la a uma nova realidade - nova, mas ainda fundamentalmente material, como é o caso do corpo glorioso com que Cristo, após seu período na Terra, ascende aos Céus.
Cristianismo e Kali Yuga
Dito tudo isso, quero agora retomar a ideia guénoniana sobre os grandes ciclos cósmicos e a Kali Yuga.
Primeiro, porque não se trata exatamente de uma ideia guénoniana, e sim de uma ideia de alcance quase universal, repetida que é, de fato, por diversos povos, de maneira diversas - assim como é repetido o mito do dilúvio, ou mitologias similares, apontando a um evento de enormes proporções que possivelmente teria marcado a transição da idade anterior para a atual. Segundo, porque eu mesmo não consigo abandonar a ideia simplesmente por não ser tida como cristã, considerando, secretamente ou não, que tudo o que não é claramente cristão é provavelmente diabólico (e me perdoem a franqueza aqui). Terceiro: mesmo se o leitor não concordar comigo, peço que siga adiante apenas pelo jogo de considerar a possibilidade de, neste ponto, Guénon estar certo - por amor à argumentação, diria o jurista.
Suponhamos, então, que Guénon esteja certo e de fato vivamos na Kali Yuga.
Neste caso, à luz do Cristianismo, as seguintes conclusões me parecem possíveis - ou mesmo necessárias:
i) A materialização não é em si diabólica, como sugere Guénon. Uma maior materialização não significa necessariamente um maior afastamento do espírito. Em eras passadas, talvez tenha sido mesmo o caso - e essa lógica pode mesmo fazer sentido em outras religiões (ou seja: não estou afirmando que não há salvação por outros caminhos - até porque sinceramente acredito, e muito, que os caminhos de Deus são infinitamente misteriosos). Mas, no Cristianismo, matéria e espírito, imanência e transcendência, quantidade e qualidade são polos da existência que devem ser louvados, glorificados, integrados e, em unidade, redimidos.
ii) Justamente por isso, com a morte de Cristo na cruz o véu do templo se rasgou. As hierarquias podem e devem existir na Igreja e na sociedade em seu todo - não se trata disso: não defendo a bagunça que se tornou a Igreja em seu ímpeto “progressista”, e muito menos a barbárie civilizacional. Deve haver ordem nas coisas: meu ponto aqui não é este. O ponto é, sim, que o Cristianismo é profundamente democrático, no sentido de que o chamado à santificação, ou theosis, é mesmo universal - e não patrimônio reservado a uma pequena elite.
iii) Muitos tradicionalistas, aliás, fazem de seu apego elitista uma força política, rebatendo toda forma de ganho de poder por outros que não sejam os membros da suposta elite. Eu compreendo, sinceramente, o desejo por ordem hierárquica, e entendo perfeitamente que as forças mais baixas - seja num organismo individual, seja num organismo coletivo -, se não controladas e guiadas, podem ser extremamente prejudiciais e, no limite, destrutivas. Mas, se a Kali Yuga se insere dentro de um grande plano cósmico, todo o processo, ainda que imensamente doloroso, deve ocorrer - e o desafio óbvio passa a ser: como integrar a quantidade sem desprezar a qualidade? Não quero - note o leitor - glorificar a modernidade, erigida que foi por escolhas humanas em larga medida equivocadas e que levaram a um enorme afastamento de Deus (o que já foi tema de outros textos). Este é, porém, o nosso tempo, e é nele que devemos encontrar o sentido redentor; de alguma forma, é aqui mesmo que devemos estar.
iv) Segundo a lógica das tradições para as quais a divisão entre esoterismo “elitista” e exoterismo “das massas” faz sentido, deve-se mesmo, a todo custo, lutar contra a materialização excessiva, ou o mergulho do mundo na quantidade. Para o Cristianismo, porém, é justamente na materialização e no mergulho na quantidade que reside, secretamente, a realização espiritual, ou qualitativa, última. Toda a fragmentação do mundo moderno, por mais trágica que seja - e efetivamente o é, porque o que vemos por todo lado é uma quantidade de fato dissociada da qualidade, o que tenebroso -, traz, por outro lado, um convite missionário ao cristão: nenhuma fragmentação, nenhum mergulho no materialismo, nenhum império excessivo da quantidade deve ser evitado, e sim redimido, como tão claramente simboliza a crucificação de Cristo.
v) Por tudo isso, se Guénon e as doutrinas sobre os ciclos cósmicos estiverem certos, torna-se possível concluir que o Cristianismo revela sua essência e sua inevitabilidade de forma especialmente clara no paroxismo da Kali Yuga, por ser a única religião cuja vocação escancaradamente essencial está justamente em redimir, pela qualidade, a quantidade. Noutras eras, talvez as coisas tenham sido diferentes, e talvez - seguindo com o pressuposto de que outras eras existiram - humanidades anteriores tivessem espécies diferentes de chamado à santificação. Mesmo na era atual, aliás, talvez ainda haja esse tipo chamado para muitos. Mas, mais fundamentalmente, o mergulho impressionante do mundo contemporâneo na quantidade - mergulho que, para Guénon, é mais avançado do que em qualquer outro tempo: lembremos que somos os trabalhadores da última hora - clama por uma religião capaz de integrar verdadeiramente a transcendência e fragmentação aparentemente sem sentido da imanência. E isso apenas pode se dar pela mais íntegra entre todas as religiões.
Diferentemente dos avatares hindus, Jesus é uma particularização muito especial de encarnação divina - e recomendo, sobre o tema, este excelente texto do Leo Nunes. Não se trata Jesus de um grande erudito de família nobre, um mestre guerreiro ou um rei. Em termos puramente quantitativos, era apenas um sujeito pobre, nascido num ponto periférico nas proximidades de Jerusalém, num estábulo já fora do centro da aldeia e numa manjedoura, tendo vivido em uma região modesta de que “nada de bom pode vir”. Não liderou massas ou rebeliões, não serviu nas cortes, não foi imperador ou guerreiro. Foi um sujeito absolutamente comum, materialmente humilde, como tantos e tantos que compõem, e sempre compuseram, a imensa multidão de seres humanos que relação alguma têm com as grandes elites.
Quantitativamente, Jesus é, de certa forma, a particularização das massas. E, em sua morte, prega-se à matéria em sua expressão mais brutal. Justamente neste cenário - que Guénon e os tradicionalistas em geral tenderiam a simplesmente desprezar, pois não encaixa mesmo em seus esquemas de compreensão das coisas -, Cristo redime, qualitativamente, toda a existência. O véu do templo em sua morte se rasga: temos aqui, escancarado, um simbolismo de todo anti-elitista.
Hoje, se vivemos o paroxismo da Kali Yuga - como defendem os tradicionalistas -, ponto talvez máximo e incontornável da materialização do mundo, a pergunta que segue cabendo ao cristão é ainda a mesma de sempre: como posso contribuir para redimir a existência?
Ou em termos guénonianos: como posso qualificar a quantidade?
A resposta, claro, passa necessariamente por descobrir em si próprio, no seio da matéria, a qualidade capaz de redimi-la. E isso, como já defendi antes e já deixei sugerido aqui também (e vou dizer ainda muitas vezes mais, pois é tema de primeiríssima importância segundo a forma como vejo as coisas), relaciona-se à (re)descoberta do hesicasmo.
Continuarei num próximo texto.
Ao que tudo indica, tratou-se sobretudo de ignorância. Apenas ao final de sua vida há trechos em que trata do hesicasmo, e somente de passagem, como no curto Cristianismo e Iniciação, de 1949. O certo é que o foco de sua obra já mais esteve aí.
Texto de alta qualidade, como sempre, Bruno! A respeito desses assuntos, gostaria de fazer uma pergunta quanto ao cristianismo oriental e ao esoterismo que me surgiu enquanto assistia ao canal que você recomendou "Filosofia Mística De São Máximo, o Confessor". Pelo que compreendi, aos ortodoxos há a crença de uma incompatibilidade entre a lógica do mundo e a lógica de Deus, e nesse sentido, o cristianismo ocidental é perigoso por tentar operar justamente sob a lógica intrinsicamente inversa a cristã, do mundo, e isso se observaria em coisas como a visão ruim quanto o uso da imaginação durante a oração. Entretanto, isso me fez questionar, tal postura extremamente apofática e de negação do mundo não aproximaria o cristianismo oriental de um gnosticismo? Inicialmente espantei a ideia da minha mente, me baseando em meu desconhecimento quanto ao assunto, mas depois encontrei (admitidamente enquanto eu usava o ChatGPT para fazer uma sondagem de autores que tivessem tratado de uma possível integração entre o cristianismo ocidental e oriental) o que parece ser uma crítica similar vinda de Hans Urs von Balthasar, um católico que apresentava justamente uma grande admiração a Ortodoxia e fez parte do movimento de resourcment dentro da Santa Igreja. Apesar de afirmar a importância da mística, ressalta esse perigo e nota que a vinda de Cristo foi uma revelação positiva. (pelo menos foi isso que o ChatGPT disse que ele diz, não boto a minha mão no fogo por ele não! Kkkk). Não sei se a minha análise estaria correta, mas ao que me parece, o cristianismo ocidental, pelo menos em sua fase áurea, justamente buscava essa redenção "do reino da quantidade", com a ordenação dos desejos e da razão, enquanto o oriental o negava,...
O que acha desse posicionamento? É uma crítica válida ou precipitada a do Balthazar (e minha)?
Um parêntese: na tradição protestante em que fui criado, praticávamos a invocação do nome de Jesus Cristo e se dava muita ênfase a isso, e lá também se falava bastante sobre o conceito de theosis - ainda que não com esse nome, mas com a mesma descrição - como o ponto central da revelação do novo testamento. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar ambos sendo enfatizados na tradição cristã oriental! Muito provável que aqueles que lançaram as bases desse grupo tenham bebido dessa fonte. Aliás, muito obrigado pela indicação do livro, uma pequena preciosidade!