Imanência e Transcendência de Cristo
Tentando entender esse absurdo mistério a partir de um romance abandonado
Lá pelos meus 20 e poucos anos, tinha uma ideia de romance a escrever. O título já estava certo: O Estereoscopista.
O estereoscópio é um aparelho estranho, já quase de todo em desuso. Basicamente, ali se colocam duas fotos quase idênticas, com diferenças muito sutis, e o observador, por meio de um binóculos, consegue contemplar uma terceira imagem, diferente das duas originais - e mais rica que ambas.
Na realidade, eu nunca tive contato com um estereoscópio. Mas tive, na infância, contato com algo similar, ainda que mais pueril. Talvez o leitor, como eu, tenha tido acesso a um daquelas revistas “Mônica 3D” ou algo do tipo. O princípio é estereoscópico: são postas diversas imagens, uma ao lado da outra, quase idênticas. Por meio de um certo jogo de focar o olhar - e eu me sentia muito orgulhoso de conseguir fazer aquilo -, de repente, para além daquelas imagens monótonas enfileiradas, revelava-se uma outra imagem, completamente diferente.
Pois bem. No meu romance nunca escrito, o protagonista também migraria entre dois mundos. Em seu cotidiano, viveria no universo das imagens comuns, banais, horizontais, repetitivas, nada misteriosas. Mas, por meio de uma habilidade especial, ele conseguiria ver além das imagens cotidianas. O protagonista teria acesso a uma realidade oculta, escondida por trás da realidade ordinária. O estereoscopista.
Claro que ideias de textos não vêm do nada. Ainda menos, ideias de romances - mesmo os jamais escritos. Neste caso, havia uma profunda inquietação por trás. Uma inquietação inquestionavelmente gnóstica.
Uma inquietação gnóstica pode ser descrita como uma sensação difusa, incompreendida, de que se vive em dois mundos. Um mundo ordinário, comum, de relacionamentos repetidos, frequentemente aborrecidos: mundo de obrigações, rotinas, desencaixes, ambições vãs, realizações efêmeras, frustrações. E, de outro lado, um mundo de mistérios, verdades ocultas, seres desconhecidos, eternidade, infinitude: mundo de realizações plenas, felicidade plena; plenitude, enfim.
Eu conhecia um pouco de filosofia. Pouco, mas o suficiente para ter alguma noção de que este outro mundo correspondia, grosso modo, ao mundo das ideias platônico. É o mundo das luzes verdadeiras, em contraposição à minha experiência cotidiana de sombras: era o que eu sabia. Apenas anos depois comecei a compreender que, ainda em termos platônicos (e neoplatônicos), o mundo das plenitudes está - digamos, em termos simplistas - mais próximo ao Uno, ao passo que o mundo comum, das realidades ordinárias, é mundo originado da Díade. E a Díade, geradora das divisões e multiplicidades, não deixa de ser a origem do próprio mal, de que a vida cotidiana de cada um de nós é sombrio exemplo.
O estereoscopista do romance ficaria perdido entre esses dois mundos. Buscaria uma conciliação, sem sucesso. Por longos períodos, grandes esforços seriam empreendidos na busca pela transcendência absoluta. Noutros momentos - de resignação, talvez -, os esforços se verteriam para o mundo cotidiano, material. E, de fato, eu não conseguia ver uma solução possível - nem para a história do romance, nem para a minha.
Algumas ideias gnósticas sempre me atraíram. Não falo de gnosticismos grosseiros (as trilhas gnósticas podem ser incrivelmente baixas), mas daqueles, digamos, mais alinhados ao esquema platônico por mim mal esboçado acima. Falo de ideias gnósticas que tratam deste mundo terreno como ilusório, tenebroso, sem esperança, enquanto defendem a existência de um mundo superior, muito mais real e pleno, a que prometem acesso por determinado caminho iniciático misterioso.
O estereoscopista do romance seria mesmo um gnóstico. Preso a este mundo material - e o gnóstico encara a vida concreta como uma prisão -, buscaria o misterioso caminho da transcendência. Tentaria contemplar a vida como contemplava seus livrinhos infantis: por trás das imagens repetidas e monótonas do cotidiano, buscaria a imagem oculta, mais real do que a realidade. É a fuga da Matrix ou do Show de Truman: dois filmes decididamente gnósticos que marcaram qualquer adolescente minimamente americanizado de fins dos anos 90.
O romance ficou no mundo das ideias.
O tempo passou. E, por esses mistérios da vida, o gnóstico de ontem finalmente reconhece seu gnosticismo arraigado - e não o vê como algo bom. Busca outro caminho. E começa a encontrá-lo.
Acredito que, afora alguns casos muitíssimo excepcionais - não é todo mundo que se converte ao cair do cavalo e ter uma experiência mística -, as jornadas de conversão são labirínticas. Em todos os campos.
No campo intelectual, por exemplo, há certos temas que surgem, são levemente compreendidos, e logo esquecidos; depois, retornam - talvez numa oitava superior, na linguagem musical. Compreendemos um tantinho, deixamos de lado, e depois compreendemos um tantinho mais, e assim por diante.
Não sei quantas idas e vindas mais serão necessárias para a compreensão do mistério da encarnação. Calculo que ao menos umas setecentas. Mas, por ora, quero apenas compartilhar um desses tantinhos de acréscimo de compreensão que acredito ter tido sobre o tema. Acréscimo que - sim! - tem a ver com o nosso estereoscopista.
O que nosso herói do romance jamais escrito, nosso protagonista que jamais protagonizou história alguma, fazia? Ora: ele errava. Perdia-se entre dois mundos. Sentindo-se preso à imanência, ao mundo cotidiano, buscava desesperadamente a transcendência; cansando-se de seus esforços em direção ao desejado mundo superior, voltava a cair na pura imanência, e vivia sua vidinha material. E assim tocava seus dias, entre lá e cá, sonhando e retornando; e seus dias, em suas errâncias estereoscópicas, perdiam-se junto com o protagonista. Uma vida que se desperdiçava em meio aos sonhos mais elevados - e quantas vidas não se desperdiçam assim?
Por quanto tempo não fui como o estereoscopista? Por quanto tempo não imaginei, menos ou mais conscientemente, que o mundo de verdade, o mundo da verdade, estava noutro lugar? Há gnosticismo demais na minha história; e, estou certo, não apenas na minha. Como uma conversão para um sentido absolutamente outro não seria labiríntico? Como poderia eu, num curto espaço, compreender o mistério dos mistérios - que por tantos anos me escapou completamente?
Eu não tinha bagagem filosófica alguma (não que hoje tenha muita, mas algumas sacolinhas filosóficas a mais, espero) para compreender que, enquanto buscava misteriosos caminhos gnósticos, era o tão negligenciado Cristianismo que escondia a chave secreta - a verdadeira chave secreta - da minha mais profunda inquietação existencial. Escrevendo estas linhas, vejo-me naquele texto de Chesterton, do navegante que percorre todo o globo apenas para descobrir que a resposta pela qual tanto ansiava sempre esteve a seu lado. Ou me vejo naquela música dos Beatles que, repetindo alguns versos do Tao Ta Ching, diz: “Without going out of my door / I can know all things of earth. / Without looking out of my window / I could know the ways of heaven. / The farther one travels / The less one knows / The less one really knows” (uma música, estou certo, sem qualquer intenção exatamente cristã; mas a música foi para o mundo, e cada um faz com ela o que quiser).
No meu caso, eu realmente (não há qualquer figura de linguagem aqui) vivi toda a minha infância em frente a uma grande e bela Igreja Católica. Grande e bela Igreja à qual eu não dava a mínima.
Na adolescência e juventude, busquei segredos ocultos. A certa altura, reconheci-me perdido entre dois mundos - como o estereoscopista. Não via saída. Buscava, mais e mais, chaves secretas, caminhos misteriosos, feitos para poucos, pouquíssimos - não! Não estaria em nada banal, em algo tão batido, tão pueril, tão bobo, tão piegas, tão démodé quanto… Jesus Cristo.
Recentemente, o Leo Nunes, em mais um de seus textos incríveis, explorou a questão da encarnação do Verbo com uma riqueza e uma profundidade muito maiores do que as deste meu escrito muito mais simples, quase autobiográfico. Recomendo-o (o indicado acima, e este também) ao leitor interessado em maior densidade filosófica.
De minha parte, não quero muito mais do que deixar assinalado meu assombro diante desta descoberta tão simples, e de tão difícil compreensão: Jesus Cristo, o Logos divino, a Segunda Pessoa da Trindade, por sua encarnação, resolve a irreconciliável ambivalência do Uno e da Díade. Resolve a dicotomia aparentemente irreconciliável entre Céu e terra, a transcendência e a imanência. Resolve o drama da Matrix ou do Show de Truman apontando o caminho - que é, misteriosamente, a um só tempo cá e lá. É o mistério da onipresença, que abrange toda a criação; e toda a criação inclui este escritório improvisado em que escrevo estas linhas, num ponto diminuto e aparentemente insignificante do mapa. O ápice magnífico da existência - que o nosso estereoscopista, em seus sonhos gnósticos, imaginava estar apenas no infinitamente distante - revela seu esplendor também aqui, neste mundo, nesta terra.
O ápice magnífico da existência não está - eis o que quer revelar o Logos encarnado - apenas infinitamente além deste corpo-prisão. Na verdade, não há o corpo-prisão dos gnósticos. A animalidade pulsante de instintos deste corpo estranho, cuja pele fina esconde vísceras horríveis, não é um erro, nem é algo que seria melhor que não fosse (diz-se mesmo que os cátaros, gnósticos dos séculos XI-XIII, defendiam a não-procriação, pois fazer alguém nascer aqui é condenar uma centelha espiritual ao aprisionamento). O ápice magnífico da existência não está, ou ao menos não está apenas, infinitamente além desta vidinha ordinária, deste improvisado escritório enfadonho, desta rotina diária às vezes interminável, em que se entrecruzam obrigações laborais e familiares, audiências e noites insones ninando o bebê.
O mistério da encarnação não resolve apenas o mais profundo problema filosófico, do Uno e da Díade, da transcendência e da imanência. Para mim, é muito mais do que isso. Resolve meu mais profundo dilema existencial.
O Estereoscopista nunca foi escrito. Ficou no mundo das ideias. Talvez tenha sido melhor assim: seria mais uma história a, como tantas outras, acrescentar camadas da confusão à nossa já tão confusa vida.
Talvez um dia eu encare voltar a escrevê-lo.
Mas, então, já não será o perdido estereoscopista originalmente pensado - eu asseguro.
Será um estereoscopista que encontrará a chave misteriosa, pela qual ansiara por toda a sua vida.
Será um estereoscopista cristão, talvez. Ou melhor: certamente.
De que outra maneira encontraria a chave?
Caramba, Bruno! Que texto maravilhoso! Já é meu favorito. Adorei a abordagem mais autobiográfica, confessional. É impossível não me identificar com a tua história.
Também fico muito grato e lisonjeado pela menção aos meus textos. Muito obrigado pelas palavras! Um abraço!
Poxa vida meu amigo, onde estava o seu substack durante todo esse tempo? Estou "maratonando" seus artigos e os do Leo Nunes (encontrei o seu através do dele), vocês me dão vergonha de achar que posso escrever alguma coisa! Há um tempo atrás, ao ler sobre o uno e a díade, tive esta mesma exata conclusão: Jesus Cristo é a síntese. Há uma passagem na epístola de São Paulo aos Efésios que então ganhou sentido pleno para mim: "Ele nos revelou o mistério da sua vontade, segundo o Seu propósito, que Ele apresentou em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra." Essa convergência só existe em Cristo! Ele trouxe a eternidade ao tempo-espaço do material, a escada que une o céu à terra, não mais separados, o véu, rasgado de alto a baixo. Incrivelmente estou escrevendo umas linhas, esboçando uma história que tem como personagem principal um estereoscopista! Não o seu estereoscopista, é claro, esse está morando aí com você, espero que deixe-o ver a luz do dia em algum momento! Mas o comportamento e o modo como vê a realidade do meu personagem é exatamente assim, um homem procurando a essência das coisas, vendo a desagregação ao redor e dividido irreconciliavelmente entre estes dois mundos. Na minha ideia de final, ele encontra justamente o cristianismo. Belíssimo texto, ressoou muito comigo.