Este texto é fruto direto do que tenho lido nas últimas semanas: autores ortodoxos, especialmente Christos Yannaras, John Romanides e Nicolai Berdiaev. A Ortodoxia tem descortinando diante de meus olhos universos completamente novos, e é com base neste meu ‘olhar de momento’ que escrevo sobre o Conclave.
A pergunta que norteia meus pensamentos sobre o Conclave é: qual o lugar da Igreja Católica Romana no mundo? Parece-me ser justamente esta a pergunta decisiva - uma pergunta que diz respeito à identidade da Igreja: o que ela é essencialmente, e, portanto, qual a meta em direção à qual a Igreja deve caminhar para ser no tempo.
Yannaras e Romanides não têm uma boa visão sobre a Igreja Católica Romana.
Para ambos, o Cristianismo ocidental tornou-se uma subversão da verdadeira Igreja, o que se deu especialmente a partir do domínio franco e a utilização - destacadamente por Carlos Magno - da teologia de Santo Agostinho para fins de domínio políticos. Posteriormente, uma certa inclinação racionalista e juridicista de Agostinho teria sido, em especial com Santo Anselmo, São Tomás e a Escolástica, aprofundada tremendamente. No século XI, dois eventos marcantes: o Cisma de 1054 e a grande reforma de Gregório VII, que centralizava, a partir de bases legalistas, o poder eclesiástico e temporal em torno do Papa.
Sim: o parágrafo acima é mesmo repleto de informações não desenvolvidas. Yannaras e Romanides gastam páginas e páginas falando sobre cada um desses temas. De qualquer forma, a ideia central aqui é: enquanto a Igreja oriental, Ortodoxa, teria preservado o espírito cristão original - mais ligado ao coração do que à mente, podemos dizer (o que, posteriormente, seria defendido por São Gregório Palamas em suas contendas contra Barlaão sobre o hesicasmo) -, a Igreja Católica Romana teria tomado um caminho crescentemente sistematizante, racional, legalista etc.
Isso, aliás, traz uma consequência lógica: na visão de Romanides e Yannaras, os tradicionalistas católicos ocidentais de hoje, ávidos pela “missa de sempre” etc., estão, na verdade, defendendo a volta a uma Igreja já profundamente revolucionária.
Guardemos essa primeira ideia.
Berdiaev já apresenta uma leitura mais complexa da história.
Para ele, não podemos resumir tudo a um embate dicotômico entre as forças do bem e as forças de subversão. A história, em seu entender, se desenrola no curso do tempo, e a sucessão de momentos histórico reflete, cada um à sua maneira, aspectos profundos da alma humana.
Acredito que, en su fondo, esta tenha sido também a intuição essencial de Ken Wilber ao propor que o ser humano e a história humana se desenvolvem em níveis, cada qual com suas próprias características, suas virtudes e suas limitações. Porém, se Ken Wilber é essencialmente um evolucionista, Berdiaev, ainda que muito mais capaz de notar méritos no Cristianismo ocidental do que Yannaras ou Romanides, tem uma visão profundamente crítica e pessimista sobre o humanismo ateu próprio à modernidade.
Guardemos essa segunda ideia.
Na visão de Yannaras ou Romanides, os caminhos possíveis do Conclave - um mais progressista, outro mais conservador - seriam, em verdade, dois caminhos essencialmente errados.
Tratar-se-ia de uma escolha, na melhor hipótese, entre um erro menor e um erro maior.
Os católicos conservadores, mesmo os mais tradicionalistas, nessa leitura ortodoxa, desejariam um retorno à Igreja racionalista, juridicista, moralista e sistematizante de Anselmo, Tomás e Gregório VII - que já seria, ela própria, uma Igreja profundamente revolucionária e subversiva.
Por outro lado, os progressistas se entregariam de vez ao canto da sereia do mundo materialista e dessacralizado - talvez um mal maior, o que não significa, porém, que o tradicionalismo católico ultramontano seja bom a seus olhos.
Já Berdiaev permite alguns pensamentos mais aprofundados.
Sim: Berdiaev era também um ortodoxo, ainda que de visões bastante particulares. Sendo um ortodoxo, era também crítico aos rumos históricos da Igreja de Roma. Mas, nutrindo pensamentos muito particulares, era capaz de entrever o valor de cada momento histórico de forma geral, e do Cristianismo ocidental em particular.
O Cristianismo original, cujas bases essenciais se teriam preservado (ainda que de forma cada vez mais diluída no curso dos tempos) na Ortodoxia, pode ser encarado como íntegro, mas de alguma forma menos consciente: as pessoas o podiam viver à perfeição, sem necessariamente compreendê-lo. A Igreja primitiva, em sua expressão oriental, é o lugar da inteireza não fragmentada, de uma verdade orgânica vivida como um todo, intuída pela oração, expressa na liturgia, contemplada no ícone.
Com a fragmentação racionalista levada a efeito pelo Ocidente, tomava-se maior consciência de cada aspecto do Cristianismo, mas o preço pago era justamente a vivência íntegra da fé cristã. O Ocidente, na leitura ortodoxa, avançou nessa direção. A Igreja ocidental tomou o rumo da sistematização: já não bastava viver a fé; era preciso defini-la, defendê-la, prová-la. Ganhava força o tribunal, a cúria, a teologia como sistema. A verdade se objetivava. A centralidade do coração, diz Romanides, dava lugar à centralidade da mente, do ativismo, do racional. A unidade da vida espiritual era fraturada em dogmas, disciplinas, definições. A processo histórico ganhava inédita relevância.
Mas - e eis o outro lado - não há consciência sem separação. “Até onde a lógica humana alcança, a unificação dos opostos equivale a um estado de inconsciência, pois o estado de consciência pressupõe, ao mesmo tempo, uma diferenciação e uma relação entre o sujeito e o objeto”, escreveu Jung. E Edward Edinger, num livro intitulado justamente A Criação da Consciência, diz justamente que é a separação o que permite o desenvolvimento da consciência, pelo atrito entre os contrários.
Berdiaev, até onde sei, não trata do tema nessa chave do acréscimo de consciência, ao menos não nessa linha junguiana. Na realidade, seu olhar sobre uma tomada de consciência humanista a partir dos fragmentos tem uma faceta crítica, como se vê, por exemplo, aqui:
Como toda realidade autêntica, a identidade humana só é conferida na concreção espiritual que imprime o selo da unidade divina sobre toda a multiplicidade humana; desaparece na abstração e no isolamento. É processo do humanismo nos tempos modernos fazer passar o homem da concreção espiritual, onde tudo é organicamente religado, para a abstração divisória, em que o homem se transforma em átomo isolado. Nessa passagem do concreto para o abstrato espera o homem da nova história obter a sua liberação, afirmar a sua individualidade, adquirir uma energia criadora. Quis o homem libertar-se, desembaraçar-se dessa graça divina que havia edificado a sua imagem e que espiritualmente o alimentava. O humanismo abstrato é a cisão contra a graça, a vida só é concreta na graça; a vida fora da graça é uma vida abstrata. Todas as ilusões do humanismo assentam neste terreno”.
Trata-se acima, porém, de uma fase já avançada de fragmentação. No início, há valor na “liberação das energias criadoras do homem, pela consagração do seu livre jogo”: foi esta a beleza do Ocidente no último milênio, até ao menos o sec. XVIII. No entanto, em dado momento, “saindo… do estado orgânico, as energias humanas sujeitam-se inevitavelmente ao estado mecânico”. A beleza criadora da Idade Média, e mesmo do Renascimento, deu lugar à era das máquinas, e o humanismo, para Berdiaev, entrou em sua fúnebre marcha em direção a seu terrível ocaso.
Seu pensamento, de que me apropriei muito livremente aqui, me agrada. Podemos dizer que Berdiaev entrevê um valor relativo em cada momento de desenvolvimento do Cristianismo. O Cristianismo oriental guardaria o tesouro da integridade, da mensagem original vivida organicamente. O Cristianismo ocidental, ao fragmentar a integridade, teria permitido, sim, por longo tempo, a tomada de consciência racional de cada fragmento - a liberdade, a autoridade sobre o mundo, a beleza e a glória sobre a terra etc. -, à custa, porém, da integridade apenas vivida.
Escreve em Uma Nova Idade Média:
No catolicismo havia uma colossal atividade humana, que se manifestava na soberania do Papa, na dominação do mundo pela Igreja católica, na criação de uma imensa cultura medieval. É o que distingue o catolicismo da ortodoxia oriental. O catolicismo não somente conduzia o homem ao céu, como também suscitava a beleza e a glória sobre a terra. Está nisto o seu grande segredo.
E noutro trecho, falando já do humanismo que nasceu justamente no seio do Ocidente cristão:
Também a experiência humanista apresenta uma significação positiva. Estava, o vivê-la, no destino do homem. O homem devia passar pela liberdade e, na liberdade, aceitar Deus. Estava nisto o sentido do humanismo.
O momento final - o fim da história, poderíamos dizer, em termos mais fukuyâmicos do que berdiaévicos - seria o da integridade consciente, ou o da consciência íntegra, pela união dos momentos anteriores. Parece mesmo haver, como já defendi aqui e aqui, um valor intrínseco em cada momento histórico: cada momento, diz Berdiaev, é uma manifestação da liberdade criadora do espírito no tempo.
Dito tudo isso, e o Concílio?
Como eu sugeria no começo, a resposta me parece depender da identidade da Igreja Ocidental. Ou posta ideia em forma de pergunta: A Igreja Ocidental já esteve onde deveria estar ou ainda caminha para onde deve estar?
Tentando esclarecer a questão noutros termos: A Igreja Ocidental “tradicional” - de Trento, do Vaticano I, da “missa de sempre” etc. - é o que a Igreja Ocidental nasceu para ser? Ou a Igreja Ocidental tem, como fim, alcançar a tal integridade consciente, ou consciência íntegra?
Esses tempos, aqui no Substack, li um texto que me deixou pensativo. Basicamente, seus autores sugerem que o Vaticano II não foi um concílio problemático em si; pelo contrário: foi um concílio extremamente valioso, sendo que o verdadeiro drama posterior - o drama da Igreja pós-conciliar, tenebroso e indefensável cenário institucional - ocorreu porque o Vaticano II não foi levado até suas últimas consequências.
Creio que está por trás desse pensamento a ideia de que a Igreja Ocidental deve caminhar rumo à integridade consciente, reivindicando sua herança comum com a Igreja Oriental. Era esse, em grande medida, o espírito do Concílio: não só aggiornamento, mas, mais fundamentalmente, o retorno às fontes, aos Padres da Igreja.
Nessa leitura, o melhor, no Conclave, seria a eleição de um Papa não exatamente progressista (pois não acredito que o mero progressismo “mundano” deva ter algum lugar na Igreja - um pouco mais sobre isso à frente), mas um Papa que procurasse levar o espírito “restaurador das fontes” do Vaticano II às suas últimas consequências.
O problema óbvio é: essa possibilidade de fato existe? Eu diria que esse honrar do espírito original do Vaticano II demandaria algo como: três décadas de pontificado de Henri de Lubac, seguidas por outras três de Von Balthasar. Ambos, porém, há tempos não estão entre nós, e não tenho qualquer razão para crer que uma sucessão de pontífices que lhes faça jus seria minimamente factível.
Por outro lado, podemos bem concluir que, de fato, a Igreja Ocidental é mesmo a de Trento, da missa de sempre, do Vaticano I: a Igreja, grosso modo, de Gregório VII a Pio XII. Neste caso, bom mesmo seria que vencesse um conservador, pois a Igreja deve, de fato, ser isso - o mundo progressista, de um lado, e a Igreja oriental, de outro, estariam em outra lógica.
Claro que dificilmente cumpriria um bom papel, como Papa, um tradicionalista ultramontano. “É preciso estabelecer de uma vez para sempre que jamais houve, que jamais se dará retorno algum a épocas mortas, jamais se deu a restauração de uma delas”, Berdiaev escreveu. “Quando falamos de uma passagem da história moderna à Idade Média, é uma maneira de exprimir-nos. Tal passagem só é possível a uma nova Idade Média, e não à antiga. Eis por que se deve considerar este acontecimento como uma revolução do espírito, uma atividade criadora para a frente, e de modo nenhum como uma ‘reação’”. De qualquer forma, uma figura que se distanciasse do progressismo humanista, trazendo novamente, para um mundo atual, por meio de uma nova irrupção do espírito, a essência do Cristianismo ocidental - essa figura seria de grande valor.
Neste caso, poderíamos estabelecer (e me aproprio livremente, mais uma vez, de Romanides, Yannaras e especialmente Berdiaev) que, à Igreja Ortodoxa, caberia preservar o espírito original cristão, a vivência orgânica etc.; à Igreja Católica Romana, caberia a defesa racional e sistemática do dogma e da moral, o domínio sobre o mundo etc. - o que, no Ocidente, com o tempo acabaria por dar ensejo a uma ainda mais forte ênfase na expansão do Cristianismo, muitas vezes já profundamente subvertido, a rincões aos quais de outra forma não chegaria, não raramente se valendo de uma linguagem mundana já quase de todo dissociada da tradição verdadeira. Ao Oriente, caberia preservar a ênfase na transcendência, ainda que sem descuidar da imanência. Ao Ocidente, caberia preservar a ênfase na imanência - a facetas sobretudo histórica, concreta do Cristianismo -, ainda que sem descuidar da transcendência.
O caminho até a integridade consciente, ou consciência íntegra, nesta hipótese, não deve ser percorrido pela Igreja Romana isoladamente (e nem pela Ortodoxa isoladamente, diga-se), mas pelo Cristianismo em seu todo - até uma misteriosíssima união final, cujos primeiros contornos definitivamente ainda não podemos ver nem nos horizontes mais longínquos. Talvez seja esse o verdadeiro ecumenismo - ainda absolutamente distante de ser um sonho realizável, mas uma ideia forte o suficiente para, por exemplo, animar Soloviev em sua conhecida Breve História do Anticristo.
Dito tudo isso, Leão XIV parece ter sido uma boa escolha?
Com os pouquíssimos elementos de que disponho, se eu fosse arriscar um palpite, diria que sim, dentro do que é possível neste tenebroso cenário atual.
Um Papa que de fato compreendesse e louvasse o espírito “ad fontes” do Vaticano II me parece muito longe de ser uma possibilidade real. O mais provável seria simplesmente um progressista - o Vaticano II, como já disse em outra ocasião, parece ter mirado em boa medida a Patrística e até a Ortodoxia, mas acertou mesmo o pentecostalismo e o progressismo. E já deve estar claro que isso apenas dividiria ainda mais a Igreja, talvez até um nível insustentável. “Os futuristas”, escreveu Berdiaev, “são arrastados num movimento de que não apreendem o sentido, porque têm uma consciência muito imperfeita da significação do seu próprio movimento. O que acontece, seja qual for o valor próprio do futurismo, é que a imagem do homem, a alma do homem e o corpo do homem em tal arte perecem; são dilacerados por inumanos vendavais, deles nada subsiste senão farrapos”.
Não sei se o “espírito do Vaticano II” (que, levado às ultimas consequências, poderia até chegar ao hesicasmo) deve ser descartado como irrealizável - talvez não. Espero que não. Mas, por ora, me parece uma realização muitíssimo longínqua para que eu me anime com supostos passos nessa direção.
Resta-me, então, torcer para que ao menos não seja uma Igreja que mergulhe em definitivo no progressismo mundano. Para isso, um Papa conciliador e capaz, sobretudo, de respeitar a missa tridentina, bem dialogando com conservadores e tradicionalistas, provavelmente é a figura mais apta a, realisticamente, manter unida a Igreja, além de preservar o espírito que talvez seja mesmo o seu: aquele de Gregório VII a Pio XII, passando por Leão XIII.
Muito bom, como sempre. Passo a pensar similarmente a você, Bruno, tendo tido mais contato com o Cristianismo Ortodoxo desde então. Inclusive li um artigo aqui no substack de um Católico de Rito Oriental (a posição que atualmente me parece a mais sensata!) sobre o Papa Francisco e a Igreja Sinodal, ideia mutio criticada pelos ultramontanos brasileiros, que toma uma posição similar a sua: https://open.substack.com/pub/athensandjerusalem/p/pope-francis-an-eastern-catholics?utm_source=share&utm_medium=android&r=2kk7rr
Inclusive dei restack em um dos artigos que fazem parte da discussão dele com um ortodoxo ex-católico, acredito que você já saiba das coisas apresentadas lá, mas tem me agregado muito particularmente, fica ai a recomendação. Agradeço pelo texto de qualidade!
Muito bom, Bruno. Vejo de forma semelhante as respectivas ênfases do cristianismo oriental e ocidental, apesar de conhecer o primeiro ainda superficialmente, através de alguns canais do youtube. Estou lendo o livro que recomendou e incrivelmente eu já praticava algumas coisas ali, eu que fui criado num grupo de origem protestante (de dificílima classificação, devo dizer, porque compartilha de alguns princípios ortodoxos, católicos romanos e protestantes; quem sabe um dia explico melhor). Estava esboçando um artigo sobre a contemplação como necessidade mais básica do cristão, e o livro veio confirmar o que eu em parte intuía. A maior crítica ao catolicismo romano, na minha humilde opinião, foi feita por Dostoievski pela boca de seu Ivan Karamazov, dizendo que a Igreja ocidental sucumbiu à terceira tentação do diabo (referindo-se à tentação de Cristo no deserto), e concordo em parte com ela. Mas, como você disse, também é necessário entender os momentos históricos, e penso que de uma forma ou de outra o plano divino se faz cumprir. O humanismo ateu e até a reforma com sua liberdade de interpretação podem ser vistos como frutos da ênfase excessiva no racionalismo e na primazia da agência humana, então entendo a crítica dos autores, embora acrescentaria que mesmo antes o abandono das práticas "espirituais" já seja a semente para esse desenvolvimento. Concordo também que precisamos olhar mais o critianismo de forma integral, não me agrada quando cristãos rejeitam toda uma tradição de prática e todo um corpo teológico simplesmente porque uma coisa ou outra não lhe agrada. Como falei que faço com os autores, gosto de reconhecer e aproveitar o que há de bom em cada faceta do cristianismo, o que não quer dizer que considero todas igualmente válidas. Claro, há aquilo que está mais perto e o que está mais longe da Verdade, mas nossos pensamentos humanos jamais poderão compreender os desígnios divinos, e mesmo desvios como você apontou no artigo sobre o neopentecostalismo ainda podem servir como porta de entrada, alcançando o pecador onde não chegam as igrejas tradicionais. Abraço e desculpe o textão!