René Guénon X Ken Wilber
Ou: Involução X Evolução. E, novamente, a busca pela Integridade.
Como já deve estar claro por quase todos os textos aqui publicados, um dos focos centrais desta página é a busca por integridade. A ideia de Metaxy aponta precisamente a isso: a um meio-caminho entre o alto e o baixo, a transcendência e a imanência, o céu e a terra. O pontifex, no mesmo sentido, é quem une de maneira íntegra tais pares de opostos, e o mesmo se pode dizer do religioso e do yogue. Também é esta a função do símbolo: unir o que de outra forma permaneceria dissociado. A etimologia de cada um desses termos aponta precisamente na mesma direção: a da integridade. E também o santo, em muitas línguas, é o inteiro, e a saúde, noutras línguas, é termo quase idêntico a inteireza.
Também na Psicologia, aliás, as coisas não são muito diferentes. Freud já notava que as doenças psíquicas refletem, no fundo, profundas divisões interiores: a integridade do ser se fragmenta em diversos segmentos conflitivos. Etimologicamente, a esquizofrenia denota justamente a ideia de uma mente dividida. Jung, por sua vez, encarava o processo de individuação como, em essência, uma jornada de integração de opostos. Tudo isso é muito significativo.
Quando buscamos autores que tratam do tema da integridade ou buscam um pensamento integral, acredito que ninguém, em tempos recentes, tenha tido mais relevância do que Ken Wilber.
De fato, muito do pensamento de Wilber é bastante proveitoso. Baseando-se em postulados científicos de diversas áreas - e não me ocuparei das críticas às suas teorias neste momento -, Wilber concluiu, por exemplo, que a vida humana se desenvolve em quatro quadrantes, e todos devem ser honrados dentro de uma vida íntegra: o indivíduo em sua dimensão interior-subjetiva (a psique pessoal), o indivíduo em sua dimensão exterior-objetiva (o corpo), o relacional em sua dimensão interior-subjetiva (as relações profundas) e o relacional em sua dimensão exterior-objetiva (as relações institucionais). Embora aqui eu faça forçosamente uma simplificação - e nem me valha precisamente da terminologia de Wilber -, é um modo esquemático bastante útil de ver-se o mundo (e que serviu como pano de fundo o último texto que escrevi aqui).
Wilber, ao tratar dos quadrantes, não parece sugerir qualquer relação hierárquica entre eles. Cada um deles é igualmente importante - como, de fato, deve acontecer em uma teoria integral.
Ocorre que, ao tratar de outro assunto - os níveis de desenvolvimento da consciência humana -, Wilber assume postura bastante diversa. Aqui, em vez de sugerir que os níveis evolutivos sejam, todos, igualmente importantes, afirma haver uma distinção hierárquica, baseada em teorias evolucionistas. Ou seja: os níveis anteriores são inferiores, e os níveis posteriores são superiores. A humanidade, em sua visão, está neste movimento evolutivo caminhando em direção a níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento.
Não quero chatear o leitor com detalhes sobre o pensamento de Wilber. Mas, grosso modo, e para os meus propósitos neste texto, importa salientar que Wilber estabelece: 1) entre os níveis mais baixos de desenvolvimento, o que ele chama de mágico, baseado em crenças em elementais da natureza, anjos, demônios e afins; 2) posteriormente, vem o nível mítico, baseado em interpretações literalistas de textos sagrados, e é aqui que surgem as grandes religiões do mundo; 3) o nível racional-científico, positivista, liberal, baseado obviamente na razão e na ciência (até aqui, aliás, nada muito diferente da ideia de Comte sobre os três estados: teológico, metafísico e positivo)1; e 4) o nível pluralista, de relativismo moral, ecologismo, louvor à diversidade, inclusividade etc. (bem sabemos, hoje, do que se trata).
Após o nível pluralista, vem o nível integral (afinal, seu objetivo é erigir um modelo integral), que hegelianamente inclui e transcende todos os anteriores. Os níveis inferiores não são simplesmente derrogados, mas sim incluídos e transcendidos pelos superiores. Tudo isso, devo dizer, é ideia que muito me agrada - ao menos em teoria.
Mas as coisas, vistas de perto, talvez não sejam tão íntegras assim. Firmemente crente no evolucionismo (de linhagem darwinista mesmo), Wilber parte da premissa de que o nível pluralista é superior ao racional-científico, que por sua vez é superior ao mítico e ao mágico. Na prática, as reivindicações do nível mítico - de que, por exemplo, existem postulados morais universais não necessariamente inclusivos, de que Jesus Cristo realmente foi Deus encarnado ou de que anjos realmente desceram dos céus em mais de uma ocasião - acabam não sendo, no modelo de Wilber, exatamente incluídas e transcendidas, mas reinterpretadas - ou, no limite, desfiguradas - à luz dos níveis superiores: Jesus não nasceu exatamente de uma virgem, mas essa história mítica é somente uma alegoria da pureza etc.
Em última análise, os postulados dos níveis mágico e mítico (sim, os termos são ruins, mas são os que ele utiliza) apenas têm valor nos níveis superiores se encarados, no máximo, alegoricamente. É o conhecido procedimento de um Joseph Campbell, por exemplo: a complexidade do fenômeno religioso torna-se de repente reduzida a apenas um de seus aspectos - o alegórico ou metafórico. E, se se procura argumentar noutro sentido - que, por exemplo, as histórias religiosas também têm seu valor justamente como são postas (o que não exclui seu valor alegórico) -, Wilber responderá: sim, têm valor dentro de seu nível, mas não nos níveis superiores, e definitivamente não no nível integral. Ou, em termos mais chulos: têm valor aos crentes retardatários (ou retardados?) no trajeto de desenvolvimento de consciência; os que evoluem deverão aprender a encará-las alegoricamente, e nada mais.
Não deve surpreender que a visão de Wilber sobre o que deva ser a religião, num nível “integral”, alinhe-se perfeitamente à ideia de uma espiritualidade não-religiosa. Escreveu ele em seu mais recente livro, Finding Radical Wholeness (“Buscando a Integridade Radical” - tradução livre), que sua abordagem
is spiritual, in the sense that it helps you to directly discover a real Wholeness—a genuine spirituality—right here and right now in your own life, but it does not demand any sort of belief in magical or mythical stories, miracle events, or anything like an institutional religion. In redefining a genuine spirituality as the discovery of a real Wholeness, it bypasses most of the magical and mythic belief systems that permeate so many of the world's religions, and exactly in that sense, it is "spiritual but not religious”.2
Vou traduzir os dois trechos destacados: 1) sua abordagem “não demanda qualquer tipo de crença em histórias mágicas ou míticas, eventos miraculosos ou qualquer coisa ligada às religiões institucionais”; e 2) ela “se desvia (bypasses) da maior parte dos sistemas de crença mágicos ou míticos”.
Ou seja: os níveis inferiores, se é que têm algum valor, devem ser encarados de forma bastante reticente. Especialmente quando o assunto são as grandes religiões: o ideal de Wilber é uma “espiritualidade pura”, na melhor linha new age, sem os “problemas” diversos trazidos pelos níveis mágico e mítico. Ao final justamente deste livro, traz uma série de meditações guiadas - afinal, por meio de técnicas, em sua visão evolucionista, poderá o homem unir-se a Deus, sem precisar de velharias antiquadas como tradições milenares e suas histórias fantasiosas.
O nível integral, na teoria wilberiana, deve incluir e transcender os anteriores. Mas tudo se dá, na visão de Wilber, mediante um longo processo evolutivo. O nível mágico foi incluído e transcendido, depois o mítico também, depois o racional-científico também. No topo dessa pirâmide, o nível pluralista é o que inclui e transcende os anteriores. O nível integral tem, logicamente, muito pluralismo, uma boa dose de racional-cientificismo, e uma mágica e uma mítica já quase completamente diluídas, quando não efetivamente desfiguradas.
Talvez a melhor maneira de conceituar o pensamento de Wilber - e me perdoem os wilberianos - seria algo como: integral, pero no mucho.
Exposto em linhas grosseiras o pensamento de Wilber, vou passar a outra abordagem que não lhe poderia ser mais antagônica: a do nosso agente de islamização René Guénon.
O leitor provavelmente bem sabe que Guénon é um crítico ferrenho da modernidade. O que talvez alguém não saiba - embora muitos também o saberão - é que sua crítica se baseia em um pressuposto histórico segundo o qual, em choque explícito ao evolucionismo de Wilber, a existência da civilização não é uma evolução, e sim uma involução. Afinal, vivemos o Kali Yuga, a quarta e pior grande era da humanidade, a “Idade de Pedra”, e já em seus estágios finais - e mais distantes da Qualidade, do Princípio etc. Mais e mais, mergulhamos na matéria, na quantidade, com tudo de ruim que há nisso tudo.
Para Guénon - e para os perenialistas de forma geral -, à humanidade são dadas, eventualmente, determinadas revelações que, por assim dizer, retardam o processo involutivo. A encarnação de Jesus Cristo ou os encontros durante 23 anos entre Mohammad e o anjo Gabriel, por exemplo, foram exemplos disso - e, a partir de tais eventos, surgia uma nova religião, cujo destino, porém, já estava selado de antemão: com o tempo, tais religiões perderiam força até atingir a opacidade, quando não sua efetiva subversão.
Lemos em seus Símbolos Fundamentais de Ciência Sagrada:
A civilização moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia… [D]e todas que conhecemos, é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e também a única que não se apoia em qualquer princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material, que vem já de vários séculos, e que se vai acelerando cada vez mais, tem sido acompanhado de uma regressão intelectual totalmente incapaz de ser compensada. Trata-se, aqui, bem entendido, da verdadeira e pura intelectualidade, que se poderia também denominar espiritualidade, qualificação esta que nos recusamos atribuir àquilo que os modernos têm-se aplicado de um modo particular: o cultivo das ciências experimentais, em vista das aplicações práticas que delas podem decorrer. Um único exemplo permitiria medir a extensão dessa regressão: a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino era, em seu tempo, um manual para uso dos estudantes; onde estão hoje os estudantes capazes de aprofundá-lo e assimilá-lo?3
Em sentido, reitero, perfeitamente oposto ao apontado por Wilber, Guénon enxerga no caminho moderno até o atual pluralismo ou igualitarismo justamente o prenúncio do movimento involutivo final. Toda a jornada involutiva própria ao Kali Yuga, de mergulho no Reino da Quantidade, se dará para, ao final, suscitar um estado geral de confusão, culminando em um “reino” que
não será mais do que a ‘grande paródia’ por excelência, a imitação caricatural e ‘satânica’ de tudo o que é verdadeiramente tradicional e espiritual... Sob o pretexto de uma falsa ‘restauração espiritual’, haverá uma espécie de reintrodução da qualidade em todas as coisas, mas de uma qualidade tomada ao invés do seu valor legítimo e normal; depois do ‘igualitarismo’ dos nossos dias, virá de novo uma hierarquia afirmada visivelmente, mas uma hierarquia invertida, ou, mais propriamente, uma ‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que tocar mais perto no fundo dos ‘abismos infernais’.4
Aplicando aqui os mesmos critérios utilizados na análise de Wilber, podemos afirmar que, enquanto Wilber desvaloriza e esvazia o que chama de níveis mítico e mágico (as próprias expressões trazem um tom pejorativo), Guénon demoniza os níveis racional-científico e pluralista - ambos constitutivos da modernidade (e, agora, da pós-modernidade, se quisermos empregar este termo).
Como Wilber, também Guénon certamente não defende explicitamente que o homem seja fragmentado, dissociado, alienado de porções essenciais do próprio ser. Pelo contrário: afirma buscar, em alguma medida, a reconstituição do ser humano, sobretudo a partir de uma revalorização do intelecto ou nous - tão negligenciado pela modernidade.
Mas, ao demonizar os estágios racional-científico e pluralista, que também são humanos - sejam eles frutos de uma evolução, como quer Wilber, ou uma involução, como quer o próprio Guénon -, nosso agente de islamização atenta contra a humanidade. Tenho para mim, aliás, que a visão guénoniana, de assombroso pessimismo diante da realidade atual, é ainda mais deletéria às almas (se é que tal comparação é possível) do que o otimismo evolucionista de Wilber. Seja como for, em nenhum desses casos há espaço para uma verdadeira integridade.
Curiosamente, a hierarquização dos níveis evolutivos de Wilber deságua, ao final, no nível pluralista - não-hierárquico por excelência. No ápice da hierarquia, há a abolição das hierarquias. Assim, porém, tudo o que havia de legitimamente hierárquico nos níveis anteriores é demonizado. A integração final (o “nível integral”), feita a partir de lentes pluralistas, demoniza tudo aquilo que, nos níveis “inferiores”, atenta contra o pluralismo. A superioridade hierárquica atribuída ao pluralismo não-hierárquico(!) abole todas as hierarquias, a não ser aquela que coloca a si mesma no topo. Não há espaço para deuses ou anjos ontologicamente superiores ao homem, e muito menos para instituições tradicionais marcadas por relações hierarquicamente ordenadas.
Já Guénon apresenta o que, a nossos olhos modernos, apenas pode ser rotulado de uma contra-hierarquia. Tudo o que a sociedade vê como superior - os avanços científicos e materiais, especialmente - Guénon encara como inferior. Fosse apenas isso, creio que não haveria grandes problemas (e eu mesmo, em alguma medida, tenderia a concordar). Mas Guénon, ao sugerir que a modernidade representa o mais absoluto afastamento de Deus, sugere também que tudo o que há neste mundo atual é verdadeiramente diabólico. À sua maneira, sua busca pela revalorização do nous (ou o intelecto, que, em seus textos, tem o sentido de “espírito”) implica uma rejeição, quando não uma efetiva condenação, da psique e do corpo: há um certo elemento gnóstico nisso tudo, e não me surpreenderia descobrir algum dia que, de fato, a influência guénoniana tenha resultado, concretamente, em desejos e ações muito reais no sentido de acelerar o fim deste mundo (mergulhado que está, a olhos guénonianos, no mal absoluto).
Nada disso pode levar de fato à integridade.
Dito tudo isso, e o texto já se alonga demais, resta-me sugerir um caminho alternativo. Creio que exista uma solução verdadeiramente íntegra em toda essa confusão de visões de mundo conflitantes. E essa solução passa por não hierarquizar os níveis de desenvolvimento - ou ao menos tomá-los todos, em sua inteireza, com a mais absoluta seriedade - e, assim, abrir espaço à integridade e às verdadeiras hierarquias.
De início, o caminho passa por não desprezar o nível mágico, de deuses, anjos, espíritos da natureza etc. Com feito, só podemos desprezar esse nível a partir de uma leitura de mundo - justamente como a de Wilber - ávida por encarar nossos antepassados como essencialmente equivocados. Crianças, talvez. Talvez simplesmente lunáticos. Mas, como já escrevi anteriormente, é prodigioso que nos tenhamos tornado a primeira civilização a não encarar com seriedade a possibilidade de existência de seres não-materiais entre nós. No que é do meu conhecimento, ninguém tem colaborado mais para a reapreciação séria do valor deste nível mágico do que Jonathan Pageau e os padres ortodoxos Stephen de Young e Andrew Stephen Damick - estes últimos, especialmente por meio do podcast The Lord of Spirits. Um punhado de C. S. Lewis, principalmente seu A Imagem Descartada (o livro em si está caro, mas há pdfs por aí), também ajuda um tanto a reapreciar este nível.
E que dizer do nível mítico, desdenhado por Wilber com toda a sua força (ainda que argumente estar apenas “incluindo e transcendendo”)? É bastante fácil, para a mentalidade moderna (racional-científica ou pluralista), demonizar as religiões institucionais como coisas retrógradas, frutos de mentes limitadas, e as histórias sagrados como mitos puramente inventados que contém, no máximo, algum sentido alegórico. Eu mesmo sei fazer isso muito bem. Mas a integridade exige a complexidade. Não há integridade quando se procura “integrar” apenas o que parece caber em determinada cosmovisão dominante e parcial, desprezando ou reinterpretando alegoricamente o restante. Os dogmas, os ritos, os preceitos morais, as exigências tantas vezes pesadas, as rotinas, o chamado para, ao máximo, procurarmos nos conformar a determinados modelos de bondade e caridade, e, claro, as histórias sagradas: é muito simples varrer tudo isso do campo das coisas a serem tomadas a sério, seja em nome da ciência ou de uma pretensa “espiritualidade superior”. Modelos verdadeiramente integrais devem tomar este nível com toda a seriedade e em toda a sua inteireza - ou seja: deve ser tomado tão a sério quanto os níveis “superiores”.
Especificamente em relação à suposição de Wilber de que, nos níveis “superiores”, as histórias religiosas se tornam puramente o metafóricas ou alegóricas, nenhuma resposta me parece melhor - e mais integral, no pleno sentido do termo - do que esta, novamente de Jonathan Pageau:
O mesmo raciocínio se aplica - agora, para desespero de Guénon e seus correligionários do Kali Yuga - aos níveis racional-científico e pluralista-inclusivo. Da mesma forma que o modernismo wilberiano despreza a importância real e atual da mágica e da mítica (ainda estou usando esses termos), o tradicionalismo guénoniano demoniza com todas as forças tudo o que surge na modernidade. Mas como negar que, entre tantos males (e há males em todos os níveis), há inquestionáveis bens que surgiram justamente nestes últimos séculos? A ciência é um bem, por mais que o cientificismo não o seja. Os prodigiosos avanços tecnológicos são um bem, por mais que o materialismo e o vício nestes diabinhos portáteis que carregamos para todo canto (e em que você talvez esteja lendo este texto) não o sejam. As formidáveis descobertas da Psicologia Profunda são um bem, por mais que o psicologismo não o seja. O respeito à diversidade é um bem, por mais que o relativismo absoluto evidentemente não o seja: se é certo que a glorificação absoluta das margens é um lado terrivelmente sombrio da nossa era pluralista, dar-se espaço e voz ao historicamente negligenciado e marginalizado é imprescindível, sem dúvida, à nossa integridade civilizacional5 (exatamente na mesma medida em que dar espaço e voz aos nossos lados sombrios é imprescindível à nossa integridade psíquica, por mais que a sombra não deva jamais tornar-se o centro do nosso ser). Etc. Saibamos caminhar no nosso tempo: há muita coisa bonita por aí.
Talvez devamos olhar para a mágico, o mítico, o racional e o pluralista (sigo com os termos de Wilber) como olhamos para as estações. O verão não “transcende e inclui” o inverno (ou apenas o “transcende e inclui” precisamente na mesma medida em que também é incluído e transcendido pelo mesmo inverno!). A primavera não é superior ao outono, nem este àquela. As estações se complementam, e é justamente a dança complexa das estações que perfaz a integridade de um ciclo anual (o número doze - e são 12 os meses do ano, por exemplo - é um símbolo da integridade e, ao mesmo tempo, representa o círculo). Pois a integridade verdadeira exige a complexidade. Exige a abertura ao paradoxo. Exige até mesmo tomar com seriedade as contribuições de gente como Ken Wilber ou René Guénon.6
Em certos temas, especialmente os “polêmicos”, haverá visões conflitantes em diferentes níveis. Mas temas polêmicos são temas multifacetados. A abertura ao paradoxo é imprescindível à verdadeira integridade - ou teremos, no máximo, simulacros de integridade.
Talvez fosse o caso de explorar um pouco mais essa relação entre paradoxo e integridade, mas o texto já se alonga demais. Deixo para uma próxima.
E um livro absolutamente brilhante que, entre outras coisas, critica o positivismo comteano (com o qual Wilber, aliás, parece ter muito pouca familiaridade: ao menos é o que se pode inferir desta entrevista de 2015), é O Drama do Humanismo Ateu, do cardeal Henri de Lubac.
WILBER, Ken. Finding Radical Wholeness: The Integral Path to Unity, Growth and Delight. Boston: Shambhala, 2024, pp. 1-2.
GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada. São Paulo: Irget, 2015, p. 9.
GUÉNON, René. O Reino da Quantidade e os sinais dos tempos. São Paulo: Irget, 2015.
Sobre as margens, também acredito que ninguém trate tão bem do tema quanto, mais uma vez, Jonathan Pageau (ver especialmente suas falas a respeito do carnaval e afins).
Mas claro que isso deve dar-se a partir de um critério: quais os pontos em seus pensamentos que, de fato, colaboram para forjar uma visão mais rica e integral sobre o ser humano (por ex.: a defesa de Guénon do mundo pré-moderno é um contraponto valiosíssimo às tendências correntes, jogando luzes sobre elementos verdadeiramente bons de outros tempos, ou outras civilizações, que tendem a não ser notados, ou a ser efusivamente desprezados; a demonização pura e simples da modernidade, por outro lado, mais dilapida a integridade do que auxilia a amalgamá-la: Guénon não tece críticas legítimas à modernidade, muitas vezes bem-vindas, mas parte do pressuposto de que a modernidade, em seu todo e em todas as suas manifestações, é um mal - o que, convenhamos, só faz sentido se se levar a “ideologia do Kali Yuga” a consequências absolutamente extremadas).
Obrigado pelo texto. Valeu a pena o trabalho! Parabéns.
1 - Me parece que a teoria wilberiana se autorrefuta, por um lado, como você bem pontuou, por assumir uma hierarquia ao mesmo tempo que a nega, e como extensão disso, por também ter embutida em si o mito do progresso automático e inevitável. Me parece positivismo com outra roupagem. É curioso que a modernidade não abandonou o mito, ela só mitificou a tecnologia e a ciência (coisas como a erradicação de doenças pela manipulação genética, a promessa da vida eterna através da IA e do transhumanismo etc) como os novos deuses que introduzirão a utopia
2 - a oposição Wilber x Guenón tem algo da oposição Mumford x Spengler do meu último artigo, com a diferença que nesta segunda ambos são "pessimistas"
3 - o livro do Lubac que citou é espetacular, estive relendo por estes dias. A análise que ele faz de dostoievski é iluminadora.
4 - correndo o risco de chover no molhado, com certeza você está muito mais familiarizado do que eu com a obra do Mircea Eliade, mas queria recomendar um outro autor que também fala sobre a importância do mito e da religião para as primeiras sociedades, trata-se de Fustel de Coulanges em "A cidade antiga".
5 - excelente texto, como sempre. Vou ter que reler pq devo ter deixado algo pelo caminho.