"Sede perfeitos...": um modelo integral
O que, afinal, significam a 'integridade', a 'perfeição' e a 'santidade'?
Como já defendi em textos anteriores, o marco fundamental do Cristianismo está no fato de que, em sua essência, é uma tradição marcada pela união entre a transcendência e a imanência. E este é um fato assombroso - tão assombroso que mesmo alguém como eu, com já quase duas décadas de estudos muito interessados sobre temas religiosos, levou justamente essas quase duas décadas para começar a perceber verdadeiramente a grandiosidade disso.
Não é mesmo coisa pequena. Se analisarmos bem a história da humanidade, veremos que, em boa medida, foi uma história erraticamente labiríntica, oscilando entre os dois polos - o da imanência e o da transcendência. Em todos os tempos, há notícias de eremitas que abandonaram o mundo material. Há, no curso da civilização cristã ocidental, seitas gnósticas que igualmente defenderam com ênfase o caráter essencialmente maligno da matéria. E sempre houve também, por outro lado, materialismo do mais grosseiro: libertinagem, consumismo, ateísmo, vidas fundadas em prazeres efêmeros, e assim por diante.
De um lado ou de outro, vidas fragmentadas.
Quando Deus se faz homem, e vive de fato uma vida humana (e morre uma morte demasiadamente humana), lá está, escancarado, o postulado fundamental de que imanência e transcendência estão misteriosamente unidas. Não há o abismo intransponível dos gnósticos - ávidos por “pular para lá” e esquecer as coisas daqui de baixo - ou dos materialistas - ávidos por viver aqui embaixo como se a transcendência não existisse, ou não importasse.
Jamais, ao menos no que é do meu conhecimento, esta verdade fundamental foi expressa de forma tão escancarada. Jesus Cristo, com sua face a um só tempo divina e humana, resolveu o problema fundamental da aparente antinomia entre imanência e transcendência. O que a humanidade fez com isso depois não vem ao caso agora, mas o fato é que - e aqui chego ao termo mais importante deste texto - em Jesus Cristo o clamor pela integridade foi revelado.
É uma palavra importante. Importante demais. Em português, talvez isso passe despercebido com mais facilidade. Mas vemos em inglês, por exemplo, que há uma estreita proximidade entre os termos whole (“inteiro”) e holy (“santo”). Ou entre wholeness e holyness. E similar proximidade aparece em outras línguas, especialmente germânicas.
Unindo em si a imanência e a transcendência, Cristo apresenta um clamor pela integridade.
Estou destacando este ponto porque aqui temos, a meu ver, um norte ou um critério para analisar - e julgar - pensamentos, visões de mundo, outras tradições ou mesmo interpretações sobre o Cristianismo em si. E o critério é justamente a aproximação ou o afastamento ao ideal crístico de integridade ou de união entre transcendência e imanência.
Quando se cai demasiadamente na matéria, tem-se o materialismo ou a glorificação do homem em sua pura imanência, desvinculada da transcendência.
Quando se “sobe” em demasia para longe da matéria, tem-se o gnosticismo.
Diversos sistemas de pensamento, visões de mundo etc. bandearam para um desses polos opostos - na filosofia, em outras tradições ou, claro, no próprio Cristianismo. Quando isso ocorre, há um distanciamento em relação à integridade ou à santidade. Ou seja: uma visão de matriz não-cristã pode ser mais íntegra do que uma eventual visão cristã excessivamente materialista (pensemos na famigerada teologia da prosperidade, por exemplo) ou excessivamente gnóstica.
Podemos aprofundar o pensamento.
Em qualquer cosmovisão tradicional, o ser humano é apresentado, esquematicamente, como um ser tripartite, destacando-se: 1) o corpo (ou soma); 2) a alma (ou psique); 3) o espírito (ou nous).
Uma visão de mundo excessivamente gnóstica é aquela que despreza o corpo ou a dualidade corpo-alma (soma-psique).
Uma visão de mundo excessivamente materialista é aquela que despreza o espírito ou a dualidade alma-espírito (psique-nous).
Por outro lado, uma visão de mundo integral é aquela que glorifica o corpo, a alma (ambos em suas dimensões individual e relacional) e o espírito (em que o individual e o relacional parecem estar misteriosamente unidos). Temos, esquematicamente, que:
1.1. O corpo, em sua dimensão individual, refere-se evidentemente aos cuidados com a saúde e com a moderação dos apetites mais basilares de modo geral. Os pecados capitais a serem combatidos aqui são claramente a gula e a luxúria. No Cristianismo histórico, a despeito de se tratar de uma tradição encarnacionista, pouca ênfase se vê nesta dimensão corporal individual, a não ser numa acepção negativa: abster-se da gula ou da luxúria por meio de jejum e castidade. No sistema hindu, por outro lado e por exemplo, há uma acepção positiva, consubstanciada especialmente no Hatha Yoga.
1.2. O corpo, em sua dimensão relacional, diz respeito ao que se dá em “corpos institucionais”: relações profissionais, com superiores e inferiores hierárquicos; estudos pragmáticos e utilitários (sobre economia internacional, direito civil, engenharia aeronáutica, história do Brasil Império, microbiologia, o que for); e relações de troca com o mundo de forma mais ampla: o que damos e o que recebemos do mundo, objetivamente. Neste campo está o trabalho - seja profissional, caritativo ou doméstico - e os vícios principais são a preguiça (em sua acepção mais grosseira) e a avareza (ou pouca disposição a dar o que se tem, sejam bens ou dons). Na sistemática hindu, fala-se em Karma Yoga. No Cristianismo recente, a Opus Dei, em seu chamado à santificação do trabalho, vai justamente no mesmo sentido.
2.1. A alma, em sua dimensão individual, diz respeito ao mundo dos pensamentos, emoções, sonhos etc. O cuidado com a alma se dá, por exemplo, pelas abordagens psicoterapêuticas de modo geral (e há muita crítica ao “psicologismo” por parte de autores tradicionalistas, mas tais críticas não interferem no fato de que, no campo da própria psique, um Freud ou um Jung, por exemplo, têm seu inegável valor) ou por boas leituras focadas no próprio ser (obras psicológicas, filosóficas, teológicas etc., ou mesmo grandes romances de caráter mais introspectivo do que social). A preguiça, agora compreendida como uma falta de compromisso com a compreensão de si (que exige enorme esforço), é o vício central. Nas religiões, a oração mental tem espaço aqui, além de, em boa medida, um sacramento como a confissão, por exigir um intenso olhar para si. Na sistemática hindu, tem-se especialmente o Jnana Yoga.
2.2. A alma, em sua dimensão relacional, diz respeito ao mundo dos relacionamentos profundos: amizades verdadeiras, relações familiares próximas. Os principais vícios são a ira e a inveja - que, claro, podem aparecer em relações mais superficiais, mas são especialmente impactantes nas profundas. Num campo mais amplo, aqui está a cultura ou o conjunto compartilhados de valores, razão pela qual muito dos chamados altos estudos (obras filosófico-culturais, psicológico-simbólicas, psicológico-sociais, político-sociológicas, mitológicas ou romances cujo foco central esteja no social, e não no individual) se situa nesta dimensão da psique relacional. Nas religiões, aqui está fundamentalmente o espaço devocional (ou da relação próxima, amorosa, entre a pessoa e a divindade), de que são exemplos as orações contemplativas com imagens, como os exercícios inacianos ou o terço, bem como o Bhakti Yoga e o Tantra Yoga.
3. O nous tem como fundamento a unidade, de maneira que a distinção entre um aspecto interior e outro relacional perde o sentido. No campo noético, tem-se o impulso de união entre a transcendência e a imanência, acima das dimensões física ou psíquica. A preguiça novamente figura entre os principais vícios - mas aqui compreendida em sua acepção original, como acídia ou preguiça espiritual -, além, é claro, do orgulho. Aqui aparecem, nas religiões, as orações puramente contemplativas, sem discursos ou imagens, como, no Cristianismo, algumas de que fala Santa Teresa de Ávila ou, mais claramente, como se dá na Oração de Jesus hesicasta. Na sistemática hindu, temos o Raja Yoga.
Essa divisão esquemática pode auxiliar, e muito, a discernirmos os diferentes sistemas de pensamento com que somos bombardeados dia após dia. Mas não só: obviamente, pode ser de grande valor para que, olhando para a nossa própria vida, verifiquemos se estamos de fato honrando cada aspecto da nossa integridade ou se estamos deixando pelo caminho porções essenciais de nós mesmos (e todas são essenciais).
Quando Deus se faz homem, parece-me - e reforço este ponto - que está ali um chamado bastante forte para que busquemos uma vida íntegra. “Sede, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mateus 5:48). Lembremos que o diabolos, em termos etimológicos, é aquele que divide, fragmenta (no grego antigo, derivado do verbo diabállo (διαβάλλω), composto por: diá- [δια-]: prefixo que significa ‘através’, ‘em oposição’ ou ‘divisão’ + bállo [βάλλω]: ‘lançar’, ‘arremessar’ ou ‘atacar’, de modo que o diabo é aquele que divide ou aquele que fragmenta). Já o perfeito é aquele que se faz plenamente (per-: prefixo que indica algo completo, por inteiro, ou inteiramente + facere: ‘fazer’ ou ‘realizar’).
Que modo de viver pode ser mais belo do que este: buscar, todos os dias, graus cada vez maiores de integridade e, portanto, de perfeição e santidade?
O Cristianismo é, entre todas as tradições, aquela em que o apelo por integridade está mais presente - justamente por fundar-se na encarnação do Verbo. Parece-me que ninguém soube explorar tal fato melhor do que São Máximo, o Confessor. Mas deixo um texto mais aprofundado sobre São Máximo para outro momento.
Ótimo texto! Me ajudou retomar uma reflexão sobre a diferença entre perfeição e santidade.
Depois de ler esse texto, consegui ter uma luz sobre essa visão de perfeição.
Muito obrigado!
Excelente, irmão. Muito bom mesmo. Obrigado por compartir.