O mistério da Trindade talvez seja o mais insondável entre todos os mistérios cristãos. A compreensão deste mistério é-nos seguramente impossível, a não ser por alguma graça muitíssimo especial e excepcional. (Aliás, é mesmo curioso que, ao menos formalmente, o ponto central do Grande Cisma de 1054 gire em torno de uma discussão absolutamente além de qualquer capacidade humana de apreensão: quem, afinal, poderá afirmar se o Espírito Santo procede do Pai ou do Pai e do Filho?)
Cá estou eu, então, resolvendo escrever sobre algo que me foge, em absoluto, à compreensão - pode resmungar o leitor, com alguma razão. Em minha defesa, afirmo que não é bem isso. Quero, sim, falar da Trindade. Mas apenas de um aspecto, numa abordagem bastante específica. E com as devidas referências a quem de fato pode tratar do tema.
Pois vamos lá.
O aspecto em que quero focar é o da simbologia do número três, e num sentido, como já adiantei, bastante específico. Quero argumentar que o três, inerente à Santíssima Trindade, esconde em si o segredo de uma solução eminentemente cristã para o problema da dicotomia platônica Uno-Díade (ou, em termos mais simples, Transcendência-Imanência).
O três esconde o segredo da Metaxy, no entendimento cristão que podemos conferir ao termo.
Mas sigamos passo a passo.
Primeiro, quero tratar da solução gnóstica para o problema aqui relatado, em uma perspectiva simbólica.
Para os gnosticismos de maneira geral - ao menos os gnosticismos mais grosseiros, quase caricaturais: a gnose verdadeira vai muito além disso, como tento explorar em outros textos - existe um abismo intransponível entre a verdade absoluta da transcendência e a ilusão absoluta da imanência.
Pois a verdade absoluta, nessa visão gnóstica grosseira, está ligada apenas ao Uno, e não guarda qualquer relação com este mundo material das dualidades - a Díade. Afinal, estamos aqui presos neste mundo pela obra de um demiurgo maligno, e a única reminiscência que carregamos conosco do Uno é uma pequena centelha ainda guardada em nosso coração.
Honrando a centelha do Uno, retornaremos ao Uno do qual jamais deveríamos ter saído.
O caminho gnóstico, assim, é o do retorno ao Uno, após esta peregrinação pelos males da Díade - peregrinação por este mundo mau e ilusório de dicotomias, do qual precisamos desesperadamente escapar por meio da gnosis.
Claro que este é um resumo esquemático. Mas deve bastar para compreendermos que, na visão gnóstica, a jornada humana começa no Uno e deve terminar no Uno.
Poderíamos representar simplisticamente esta jornada gnóstica pela sequência 1 - 2 - 1 (Uno - Díade - Uno). Nosso destino deve ser o retorno ao uno, como uma centelha perdida que enfim retorna ao imenso fogo indiferenciado do qual jamais deveria ter saído, e cuja saída se atribui à obra de um maligno demiurgo que, preso às teias da matéria, quer também aqui prender todas as almas.
A Trindade, porém, oculta um caminho essencialmente diverso.
Sim: surgimos do Uno e vivemos na Díade. Nestes pontos, não há controvérsia. Somos criados por Deus, a Primeira Pessoa da Trindade, e este mundo material é mesmo um mundo de dualidades às vezes complementares (masculino e feminino, por exemplo), outras vezes contrapostas (bem e mal, por exemplo).
A obra da redenção, porém, não se resume a um retorno gnóstico ao Uno.
O caminho cristão de redenção é pavimentado pelo Uno e pela Díade. Pelo 1 e pelo 2.
Somos transcendência e matéria. Essa é a marca fundamental da trajetória salvífica do Cristianismo.
Ao 1 da pura transcendência se soma o 2 da imanência. Como resultado, claro, temos o 3.
Assim, enquanto o caminho gnóstico pode ser expresso numericamente pela sequência 1 - 2 - 1, o caminho cristão pode ser expresso numericamente pela sequência 1 - 2 - 3.
E isso se relaciona à Trindade.
Não faço aqui simples especulação sem base. Vou agora recorrer a quem pode falar de tudo isso muito melhor do que eu.
Para São Gregório de Nanzianzo, os olhos do cristão devem oscilar entre a busca pelo Uno e a busca pelas Três Pessoas (ou Hipóstases) - entre, portanto, a transcendência absoluta do Uno e a “concretude” ou a “manifestação” da Tríade:
Mal concebo o Uno, sou iluminado pelo esplendor dos Três; mal os distingo, sou levado de volta ao Uno. Quando penso em qualquer Um dos Três, penso Nele como o todo, e meus olhos se enchem, e a maior parte do que penso me escapa. Não consigo apreender a grandeza daquele Uno de modo a atribuir uma maior grandeza aos demais. Quando contemplo os Três juntos, vejo apenas uma tocha, e não consigo dividir ou medir a luz indivisível.1
Vejamos o que diz Vladmir Lossky, conhecido teólogo ortodoxo, em seu importante livro The Mystical Theology of the Eastern Church:
Nosso pensamento deve estar em contínuo movimento, buscando ora o Uno, ora os Três, e retornando novamente à unidade; deve oscilar incessantemente entre os dois polos da antinomia, a fim de alcançar a contemplação do repouso soberano desta tríplice mônada.2
Esses olhos que oscilam entre o Uno e a Tríade estão, na realidade, em processo de superação da Díade pura e simples. O retorno simples ao Uno seria o movimento gnóstico. Ao partir do Uno em direção ao Trino, a Díade é incluída e transcendida, mas de maneira alguma negada. Lossky escreve:
Dois é o número que separa, três é o número que transcende toda separação: o Um e o Muitos encontram-se reunidos e circunscritos pela Trindade.3
São Gregório de Nanzianzo, no mesmo sentido:
A mônada é posta em movimento em virtude de sua riqueza; a díade é superada (porque a Divindade está acima de matéria e forma); a tríade contém a si mesma em perfeição, pois é o primeiro que supera a composição da díade. Assim, a Divindade não subsiste dentro de limites, nem se espalha a si mesma indefinidamente. No primeiro caso, não haveria honra; no segundo, não haveria ordem.4
Na contemplação da Trindade - o Deus Uno e Trino - o ser humano compreende a realidade última consistente no fato de que a infinita transcendência de Deus é, também, pessoal. A estabilidade firme de cada Pessoa não exclui a liberdade absoluta da Divindade; a plena liberdade infinita da Divindade não exclui o caráter pessoal da Trindade. Contemplando a Trindade, que é o fim mesmo de sua jornada, pode o ser humano compreender o significado da trajetória cristã: 1 - 2 - 3.
Mais uma vez, cito Lossky:
A contemplação desta perfeição absoluta, desta plenitude divina que é a Trindade - Deus que é pessoal e que não é uma pessoa confinada em si mesma -, o simples pensamento, a mera ‘pálida sombra da Trindade’, eleva a alma humana além do mundo do ser, mutável e confuso, concedendo-lhe essa estabilidade em meio às paixões; essa serenidade, ou apatheia, que é o início da deificação. Pois a criatura, sujeita à mudança por natureza, pode pela graça alcançar o estado de estabilidade eterna; pode participar da vida infinita na luz da Trindade. É por isso que a Igreja defendeu tão veementemente o mistério da Santíssima Trindade contra as tendências naturais da mente humana, que se esforçam por suprimi-lo, reduzindo a Trindade à unidade. [...] A revelação coloca um abismo entre a verdade que declara e as verdades que podem ser descobertas pela especulação filosófica5.
No trecho destacado, Lossky se refere aos filósofos que insistem em negar a existência da Trindade no sentido cristão, reduzindo, em última análise, o Trino ao Uno. Ao fazê-lo, insistem os filósofos - e Lossky cita o exemplo de Sabélio e, de forma mais cuidadosa, Plotino - no modelo gnóstico: a realização humana seria contemplação, e em última análise o retorno, à indiferenciação absoluta do Uno: o modelo 1 - 2 - 1.
No modelo 1 - 2 - 1, nosso fim é o retorno à indiferenciação.
No modelo 1 - 2 - 3, nosso fim é o mistério último em que, unidos plenamente ao Deus Uno-e-Trino, mantemos, intacto e em plenitude sempre renovada, nosso rosto pessoal.
Há não muito tempo, escrevi um relato autobiográfico sobre meu assombro diante da constatação de que a encarnação de Cristo justamente resolve a dicotomia entre a transcendência e a imanência:
Jesus Cristo, o Logos divino, a Segunda Pessoa da Trindade, por sua encarnação, resolve a irreconciliável ambivalência do Uno e da Díade. Resolve a dicotomia aparentemente irreconciliável entre Céu e terra, a transcendência e a imanência. Resolve o drama da Matrix ou do Show de Truman apontando o caminho - que é, misteriosamente, a um só tempo cá e lá. É o mistério da onipresença, que abrange toda a criação; e toda a criação inclui este escritório improvisado em que escrevo estas linhas, num ponto diminuto e aparentemente insignificante do mapa. […] O ápice magnífico da existência não está, ou ao menos não está apenas, infinitamente além desta vidinha ordinária, deste improvisado escritório enfadonho, desta rotina diária às vezes interminável, em que se entrecruzam obrigações laborais e familiares, audiências e noites insones ninando o bebê.
O mistério da encarnação não resolve apenas o mais profundo problema filosófico, do Uno e da Díade, da transcendência e da imanência. Para mim, é muito mais do que isso. Resolve meu mais profundo dilema existencial.
Imanência e Transcendência de Cristo
·Lá pelos meus 20 e poucos anos, tinha uma ideia de romance a escrever. O título já estava certo: O Estereoscopista. O estereoscópio é um aparelho estranho, já quase de todo em desuso. Basicamente, ali se colocam duas fotos quase idênticas, com diferenças muito sutis, e o observador, por meio de um binóculos, consegue contemplar uma
Agora, volto ao mesmo tema - que é, na realidade, a temática de fundo da imensa maioria dos textos aqui escritos, se o leitor bem observar.
Mas, se no outro texto o foco estava especificamente na encarnação, agora o foco se volta para a Trindade, para o mistério do número três.
Pois a revelação cristã, como se vê, quer revelar-se a si mesma de diversas formas.
Oratio XL, 41, P.G. XXXVI, 417 BC. No texto da Lossky: “No sooner do I conceive of the One than I am illumined by the splendour of the Three; no sooner do I distinguish them than I am carried back to the One. When I think of any One of the Three, I think of Him as the whole, and my eyes are filled, and the greater part of what I am thinking of escapes me. I cannot grasp the greatness of that One so as to attribute a greater greatness to the rest. When I contemplate the Three together, I see but one torch, and cannot divide or measure out the undivided light.”
LOSSKY, Vladmir. The Mystical Theology of the Eastern Church. Wellington, NZ: Crux Press, 2022, p. 40. Na versão em inglês: “Our thought must be in continuous motion, pursuing now the one, now the three, and returning again to the unity; it must swing ceaselessly between the two poles of the antinomy, in order to attain to the contemplation of the sovereign repose of this threefold monad.”
LOSSKY, Vladmir. The Mystical Theology of the Eastern Church. Wellington, NZ: Crux Press, 2022, p. 41: “Two is the number which separates, three the number which transcends all separation: the one and the many find themselves gathered and circumscribed in the Trinity”.
Oratio XXII, 8, P.G., XXXV, 1160 CD. No texto de Lossky: “The monad is set in motion in virtue of its richness; the dyad is surpassed (for the deity is above matter and form); the triad contains itself in perfection, for it is the first which surpasses the composition of the dyad. Thus, the Godhead does not dwell within bounds, nor does it spread itself indefinitely. The one would be without honour, the other would be contrary to order” (p. 40).
LOSSKY, Vladmir. The Mystical Theology of the Eastern Church. Wellington, NZ: Crux Press, 2022, p. 42: “The contemplation of this absolute perfection, of this divine plenitude which is the Trinity— God who is personal and who is not a person confined in his own self — the very thought, the mere ‘pale shade of the Trinity’, lifts the human soul beyond the world of being, changing and confused, in bestowing upon it this stability in the midst of passions; this serenity, or apatheia which is the beginning of deification. For the creature, subject to change by nature, can by grace attain to the state of eternal stability; can partake of infinite life in the light of the Trinity. This is why the Church has defended so vehemently the mystery of the Holy Trinity against the natural tendencies of the human mind, which strive to suppress it by reducing the Trinity to unity. […] Revelation sets an abyss between the truth which it declares and the truths which can be discovered by philosophical speculation”.
Excelente, Bruno! Prova disso que você falou é a insistência Cristã na Ressureição da Carne, que é justamente a elevação da Díada ao Uno sem a redução de um ao outro. Essa é uma extensão do Mistério da Encarnação, que une o 1 e o 2 sem confundi-los. A dicotomia Atma-Maya é superada pelo 3, que, sem negar a dualidade em nome da unidade, concilia todas as coisas numa espécie de eixo, ou termo médio, o qual é a um só tempo cósmico e metacósmico: Jesus Cristo. Um abração!