Simbologia numérica do Templo
Alguns pensamentos sobre as relações Par-Ímpar no caminho religioso
Há, como é bem sabido, uma simbologia ampla relacionada a números. O tema é verdadeiramente infindável, e não tenho qualquer pretensão de explorá-lo amplamente aqui. Apenas quero destacar um ponto muito específico: a diferença qualitativa que existe entre o simbolismo dos números pares e o dos números ímpares.
Os números pares têm, de início, relação com dualidade. O número dois, fundamento de todos os números pares, implica, obviamente, polaridade e dicotomia. O universo de polos oscilantes, intercambiáveis – calor e frio, claro e escuro, masculino e feminino etc. –, é o universo dos pares de opostos, o universo da dialética. O número par seguinte, o quatro, implica não apenas uma polaridade dual, mas também uma polaridade dual em equilíbrio: uma cadeira apenas se torna estável por ter quatro pés. E o número seis, como constatamos por exemplo a partir desta explicação de Jonathan Pageau, remete à noção de um sistema perfeitamente fechado, perfeitamente estável: é o número do homem fechado em si mesmo, em sua máxima potência, mas fechado à transcendência.
Já os números ímpares relacionam-se, claro, à unidade, mas não só. O ímpar rompe a dualidade, e mesmo o equilíbrio, dos sistema fechados. Deus, segundo a teologia cristã, é uno e trino – dois números ímpares que remetem à transcendência. Mesmo na cosmologia hindu, há a trindade Vishnu – Shiva – Brahma, além de Brahman – Atman – Jivatma. Alguns pensadores, como C. G. Jung, procuraram estabelecer uma quaternidade cósmica pela inclusão, por exemplo, de um princípio feminino na trindade cristã; ao fazê-lo, porém, parece ter-se fechado à transcendência, o que se reflete em seu pensamento em última análise imanentista, como eu já referi noutro texto. Ainda na lógica cristã, é interessante notar que, após as restrições próprias aos quarenta dias da Quaresma, o que se segue, cinquenta dias após a Páscoa, é o Pentecostes: se o quatro indica estabilidade e limitação, o cinco indica liberdade, transcendência – e similar relação há entre a estabilidade fechada do seis e a abertura transcendente do sete.
Mario Ferreira dos Santos, tratando do dois e do três, escreveu:
O 3 é o símbolo do dinamismo, porque se 2 pode dar o equilíbrio, três será o rompimento dinâmico desse equilíbrio, sem destruir a díada, a antinomia, mas que no interactuar, nas relações que se formam, expressa as modificações que uma sofre pela acção da outra e vice-versa, e, finalmente a diferença com que entra na nova relação, pela influência já sofrida pela acção da outra, que, por sua vez, já é diferente, explicando assim o devir dinâmico que o 2 apenas fundamenta, e o três capta como processo em seu desenvolvimento.[1]
Depois, tratando das relações entre o quatro e o cinco, o mesmo autor relembra que, enquanto o quatro indica estabilidade, “o cinco é um romper desse equilíbrio imanente, e é, por isso, símbolo de um transcender do físico”. [2]
E raciocínio similar se estabelece entre o seis e o sete. Mário Ferreira estabelece uma aproximação entre os números quatro e seis, ambos pares: “A relação da oposição revela uma reciprocidade entre os termos relacionados. Ademais, há o surgimento de uma ordem quaternária, que seria o produto da reciprocidade entre os termos. Ora, o número 6 é par e, portanto, há nele a simbolização de um equilíbrio”.[3] E, sobre o sete, lemos: “Filon nos dizia: ‘O número 7 é o primeiro a partir do número perfeito 6, e de certa maneira, idêntico à unidade. Os números que estão na década, ou são engendrados, ou engendram aqueles, que estão na década ou a própria década; mas o hebdômado não engendra nenhum dos números da década, nem é engendrado por eles. Assim em seus Mistérios, os Pitagóricos, o assinalam à deusa sempre virgem e mãe, porque ela não foi gerada e não gerará’. Santo Agostinho via no 7 o símbolo da perfeição da Plenitude, e Santo Ambrósio, o da virgindade”.[4]
As mais belas construções religiosas do mundo materializam, em larga medida, tais linguagens simbólicas. Em geral, são construções de base quadrangular ou cúbica, cuja abóboda, mesmo quando arredondada, é quase sempre puntiforme. Se, portanto, a base simboliza estabilidade e equilíbrio (o par), a cúpula simboliza a abertura ao uno. Uma ponta vertical que se estende ao céu, afinal, rompe a monotonia equilibrada e estável da base; na realidade, o equilíbrio não é desfeito: mantém-se a base sólida – um fechamento, pode-se dizer, dentro de limites muitíssimo bem estabelecidos –, mas, acima, há abertura ao infinito, ao ilimitado. Se, na base, há limitação ou cerceamento, acima há apenas a mais irrestrita liberdade.
Mesmo se pensarmos na Caaba islâmica, temos, claro, uma forma cúbica, estável: o par. O curioso é que os muçulmanos, seguindo a tradição de Maomé, dão sete voltas ao redor da estrutura.
Jean Hani, em O Simbolismo do Templo Cristão, expõe ideia no mesmo sentido:
Demonstrou-se que as estruturas dos seres inorgânicos são regidas por figuras regulares resultantes do tipo cúbico ou hexagonal, enquanto a dos seres orgânicos obedece a uma simetria pentagonal. A simetria quadrada ou hexagonal exprime um equilíbrio inerte, ‘mineral’, e a pentagonal um ritmo crescente e vivo. Está provado que essas duas simetrias foram combinadas muito sensatamente na arquitetura tradicional.[5]
Hani demonstra, em seu livro, que importantes edifícios do mundo religioso, como a Catedral de Troyes, seguem esta lógica, embora de maneira complexamente rica e detalhada – cuja exploração não caberia, certamente, neste curtíssimo texto. De maneira geral, o que podemos vislumbrar, a partir de uma interpretação simbólica das arquiteturas de templos sagrados, é alguma forma de justaposição harmônica entre dois princípios complementares: de um lado, podemos falar no princípio estável da ordem, inerente aos números pares; e, de outro, podemos falar no princípio dinâmico da liberdade, próprio aos ímpares. Esta justaposição está presente, aliás, no recorrente símbolo da montanha cósmica, atualizado nas mais diversas construções religiosas: tem-se uma base sólida, firme, estável; e, à medida que a construção se eleva rumo à abóboda, a estabilidade da base dá lugar a um progressivo refinamento em direção ao uno.
De forma geral, como Mircea Eliade demonstra em seu clássico O Sagrado e o Profano, o templo cumpre a função de entremeio – Metaxy, poderíamos dizer – entre o Céu e a terra. É uma ponte, cuja base, como visto, afeiçoa-se à bruteza da matéria, ainda que lapidada e ordenada, ao passo que o cume se refina, apontando ao céu:
A montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Índia , de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás “Umbigo da Terra”. Visto que a montanha sagrada é um axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo; daí resulta, pois, que o território que a cerca, e que constitui o ‘nosso mundo’, é considerado como a região mais alta. [...]
O mesmo simbolismo do Centro explica outras séries de imagens cosmológicas e crenças religiosas, entre as quais vamos reter as mais importantes: (a) as cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; (b) os templos são réplicas da Montanha cósmica e, consequentemente, constituem a “ligação” por excelência ‘ligação’ por excelência entre a Terra e o Céu; (c) os alicerces dos templos mergulham profundamente nas regiões inferiores. [...]
Parece-nos que se impõe uma conclusão: o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo. Sabia que seu país se encontrava efetivamente no meio da Terra; sabia também que sua cidade constituía o umbigo do Universo e, sobretudo, que o Templo ou o Palácio eram verdadeiros Centros do Mundo; mas queria também que sua própria casa se situasse no Centro e que ela fosse uma imago mundi. E, como vamos ver, acreditava-se que as habitações situavam-se de fato no Centro do Mundo e reproduziam, em escala microcósmica, o Universo. Em outras palavras, o homem das sociedades tradicionais só podia viver num espaço ‘aberto’ para o alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente assegurada e a comunicação com o outro mundo, o mundo transcendental, era ritualmente possível.[6]
O que tento fazer aqui não é – como já deve estar claro – explorar minuciosamente a simbólica numérica da arquitetura sagrada; é, pelo contrário, reduzi-la a um mínimo essencial, correspondente, a meu ver, às relações entre a estabilidade ordenada do par e a liberdade dinâmica do ímpar. Tanto a estabilidade ordenada quanto a liberdade dinâmica podem ser representadas, concretamente, de incontáveis maneiras distintas, com uma riqueza simbólica que também pode crescer mais e mais; no entanto, parece-me que esta estrutura essencial permanece. E isso, como pretendo demonstrar, pode ter importantíssimas implicação para a compreensão do que é, de fato, o caminho religioso.
Entrar no tempo – ou entrar na trilha religiosa – significa, de início, entrar num espaço limitado, demarcado. Não entramos pela cúpula de um edifício, mas caminhamos templo adentro com nossos pés no chão. Ou seja: nossos primeiros passos, seja no templo, seja na vida religiosa em seu todo, não se dão na liberdade dinâmica do ápice, mas sim na estabilidade ordenada da base. Iniciar uma vida religiosa é, em importantíssimos aspectos, uma severa limitação ao que costumávamos ser. Não é liberdade, mas, em boa medida, seu perfeito oposto: é, ao menos aos olhos do nosso eu cotidiano, um sério aprisionamento.
Os primeiros passos de uma vida religiosa são muito terrenos. Há, claro, notórias exceções: há experiências místicas da mais irrestrita liberdade que se tornam, para alguns poucos, o passo inicial da jornada religiosa. Paulo de Tarso talvez seja o mais emblemático e conhecido exemplo disso. Mas, para a quase totalidade das pessoas, não é assim que funciona. Os primeiros passos são pesados, duros, limitados. O peso pode, claro, ser compensado por uma certa empolgação inicial, que talvez dure alguns meses ou um punhado de anos – mas a empolgação passa, e o peso fica. Rito, obediência, moralidade, serviço, mortificação etc. são palavras que denotam peso e limitação.
É natural que, após algum tempo, algo em nós grite interiormente. Há um excesso de alma que simplesmente não cabe nos limites ordenados e estáveis da quadratura. Isso é importante. Pode chegar um momento em que nos peguemos abrindo mão, por exemplo, de amizades importantes, ou de todas as formas de arte que não se enquadrem em nossa nova cosmovisão religiosa. Talvez nos flagremos tendo abandonado paixões literárias antigas por uma pilha de livros de santos, apologistas ou os volumes d’O Senhor dos Anéis. Como Ibrahim Amjad escreveu em seu último texto:
A via espiritual é um assunto que, para mim, beira a obsessão, e só falo essas coisas porque realmente me aflijo quando testemunho o conflito entre arte e espiritualidade em outras pessoas. Pois este conflito foi meu durante muito tempo. Não tê-lo resolvido a tempo deixou em mim sequelas de efeitos duradouros, dos quais alguns ainda convalesço. Quando uma pessoa se converte, é natural — e talvez seja mesmo necessário — que busque uma simplicidade (ou simplificação) em sua vida, reduzindo por exemplo o contato com o mundo “profano” — e também com a complexidade do mundo. Pois a intenção pessoal de interagir com o mundo se altera: o que antes era o prazer e a razão de viver da pessoa (o agito do mundo), passa a ser um fardo. Uma certa simplicidade na escolha das obras de arte a ler, assistir e ouvir seja talvez até mesmo salutar. Uma pessoa que busca uma via espiritual é como um enfermo, que durante a enfermidade não pode se alimentar a não ser de canja, chá, bolacha de água e sal. Mas isso tem que ter prazo para acabar. É uma ração que a pessoa pode consumir durante algum tempo. Mas a pessoa não pode levar uma vida à base dessa dieta, pois vai enfraquecer muito, o seu organismo vai se debilitar. Da mesma forma, a pessoa não pode levar uma vida toda só lendo “literatura edificante”. Pois a arte é o tubo de ensaio imaginativo para aprender a lidar com a complexidade da vida. Sobretudo, para desenvolver a capacidade de amor, compaixão e empatia aos outros seres. Tolkien, em O Senhor dos Anéis, pode ter exposto uma cosmologia perfeita (e a obra de certo modo é uma cosmogonia), mas ele não vai dar isso ao sujeito. Pois é uma obra na qual a virtude e a vileza estão artificialmente separadas, são entes discretos, estanques e separados. É algo pedagógico. Mas não é suficiente para lidar com o mundo adulto.
Prendemo-nos no par, na base da montanha. O que deveria ser momentâneo torna-se definitivo. O excesso da nossa alma grita por liberdade. Já habituados à lógica ordenada da estabilidade das partes inferiores do templo – ou da vida religiosa –, nosso impulso inicial parece ser, claro, soterrar o excesso da nossa alma. Aqui, porém, o caminho se torna perigosíssimo. No âmbito puramente psicológico, autores conhecidíssimos, como Freud e Jung, tiveram muitos acertos ao denunciar os males da repressão – que leva, nada raramente, a uma vida farisaica: exteriormente comportada, interiormente caótica. Nossa persona religiosa, diria Jung, faz nascer uma monstruosa sombra, desesperada desde o fundo de nosso inconsciente, pronta a transbordar por qualquer forma que se mostre possível.
Um conhecido filme que retrata esse excesso de alma buscando qualquer maneira de expressar-se é Black Swan – que fica aqui indicado. Muitas vezes, porém, a tragédia não se exterioriza: em vez de explodir, implodimos. Nossa alma volta-se contra si mesma. Tornamo-nos sombras do que um dia fomos: talvez cínicos e desesperançosos, talvez efetivamente deprimidos e desesperados.
O excesso de alma que não cabe nas estruturas ordenadas do par busca uma saída, uma válvula de libertação. A alma intui, afinal, que, sem liberdade, apenas lhe restará a via do desespero.
Um caminho religioso, como bem expresso na estrutura de qualquer templo tradicional, deve trazer a possibilidade de liberdade. O quatro deve dar lugar ao cinco; o seis, ao sete. Após os sacrifícios dos quarenta dias de Quaresma, cujo fim é marcado pela redenção pascal, vêm os cinquenta dias culminados no Pentecostes. Após os seis dias de trabalho de criação, o sétimo dia é dedicado ao descanso. A visão da beleza infinita deve ser a coroação – e a coroa é mais um símbolo de um ornamento excessivo, um embelezamento definitivo do trajeto da alma – de uma pesada trilha de privações. “O homem das sociedades tradicionais”, escrevia Eliade, e repetimos, “só podia viver num espaço ‘aberto’ para o alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente assegurada”.
Quando, porém, uma tradição religiosa ignora a dimensão da liberdade, da ruptura de nível pelo alto, prendendo-se ao campo das restrições, privações e moralismos, o que acontece, ao final, é um fechamento absoluto na ordenação estável. Podemos pensar em uma panela de pressão sem possibilidade de vazão: na melhor hipótese, os alimentos ali dentro se perderão; na pior e mais provável, haverá uma explosão. Se um caminho religioso cerra-se ao mundo e fecha-se hermeticamente em si mesmo, com atenção pouca ou secundária à dimensão mística – a abertura por cima, para a liberdade plena da transcendência –, alguma abertura deve acontecer. Uma panela de pressão sem possibilidade de vazão é uma promessa de tragédia.
O escape, porém, não se dá apenas pelo alto. Uma pessoa que entra no templo pela porta pode deixar o templo pela mesma porta, ou por alguma saída lateral, e retornar ao mundo. De fato, parecerá extremamente libertador a alguém preso às estruturas rígidas de uma instituição religiosa repressora o simples retorno ao mundo. Se não há a liberdade por cima, há a liberdade lateral. Ou, talvez, por alguma saída subterrânea: o mesmo pentagrama que, apontando para cima, pode ser um importante símbolo tradicional, torna-se alegoria da subversão quando apontado para baixo. Do what thou wilt shall be the whole of the law, no conhecido lema de Aleister Crowley cantado em português por Raul Seixas.
Eis que chegamos, aqui, no ponto central do texto. Quero sugerir que, neste último caso – a saída por baixo –, não temos verdadeira liberdade, e sim seu simulacro ou sua sombra: a libertinagem.
Leo Nunes, em texto recente, escreveu sobre muitos tradicionalistas dos nossos tempos, “totalmente apartados de seus próprios corpos e, não obstante, com mil e uma justificações metafísicas para a sua alienação”.
A autoidentificação com o “Ātma Supremo”, em vez de fazê-los conquistar novas dimensões do seu próprio ser, os desumaniza sem lhes dar nada em troca. Com efeito, frequentemente aquilo que parece ser uma “autoidentificação com o Ātma” é, na verdade, pura blasfêmia: projetamos no fundamento da realidade as limitações que são próprias da nossa individualidade concreta. O “Eu sou o Ātma” só não é blasfemo se esse “Eu” estiver absolutamente livre dos condicionamentos da nossa individualidade.
Acontece que, quando usamos a palavra “eu”, estamos precisamente nos referindo a algo em particular, a algo condicionado; a não ser, é claro, que já sejamos santos, e que Deus nos tenha permitido experimentar diretamente a sua própria identidade — o que, digo com tranquilidade, não é o caso dos tradicionalistas que conheço. Essa desumanização “tradicional” é, portanto, uma paródia da santidade que com frequência gera aqueles que o próprio René Guénon chamava de awliyā ash-Shaytān (santos de Satã).
O “apartamento do corpo” é outra construção linguística que aponta à mesma ideia de libertação das ordenações estáveis. O corpo humano, material que é, não deixa de ser fixidez, condicionamento, estabilidade – similarmente, em alguma medida, à base da montanha ou do templo. Charles Upton, ele próprio um perenialista schuoniano por longo tempo, hoje fala sobre um possível “antinomianismo” de seu antigo e genial guru – referindo-se, por este termo pomposo, à pretensão dos libertos de colocarem-se acima de qualquer lei, moralidade ou limitação.
Há, ao que parece, diversas formas de saída por baixo. Há a saída por baixo pura e simples, do hedonismo grosseiro daquele que abandona o templo aos pontapés, vociferando contra Deus e tomando o caminho bruto da subversão. Mas talvez haja, ainda, uma saída por baixo disfarçada, daqueles que provavelmente creem, com a mais profunda certeza, que se libertam pelo ápice do templo, e não por suas profundezas malcheirosas: alcançam o topo da montanha cósmica, para então, e apenas então, talvez perceberem que não era o topo coisíssima nenhuma, mas apenas seu reflexo no lodo pantanoso muitíssimo abaixo.
No texto acima citado, Ibrahim Amjad recorda do valor da arte do mundo e denuncia o risco enorme de um “fechamento religioso” de envergadura tal que o sujeito se alheia completamente do mundo ao redor - e de sua própria possível capacidade artística. Tem enorme razão. Mas, por outro lado, meramente dar as costas ao caminho religioso e retornar inalteradamente ao mundo está longe de ser o fim desejado. Devemos, sim, voltar ao mundo, mas com outro olhar. Devemos, como Bruce Lee disse, se não engano, em uma entrevista, compreender isto:
Before I studied the art, a punch to me was just like a punch, a kick just like a kick. After I learned the art, a punch was no longer a punch, a kick no longer a kick. Now that I've understood the art, a punch is just like a punch, a kick just like a kick.
É o retorno, mas nosso olhar é de outra qualidade. Se simplesmente retornamos, sem qualquer mudança interior, não saímos pela via da liberdade.
Saímos pela via da libertinagem.
No caminho religioso, o ímpar da liberdade pressupõe o par da ordem estável. Voltamos ao mundo após a transformação do olhar.
Em muitos templos religiosos, o que se vê internamente, ao contemplar o alto, é a imagem de uma mandala. “Absolutamente”, escreveu Burckhardt, “não existe, do ponto de vista visual, melhor símbolo da complexidade interna da Unidade - da passagem da Unidade indivisível para a “Unidade na multiplicidade” ou para a “multiplicidade na Unidade” - do que a série de figuras geométricas regulares contidas em um círculo, ou a dos poliedros regulares contidos em uma esfera”.[7]
Na mandala, enquanto o centro é uno, tudo o que envolve o centro, até as margens mais exteriores, é, comumente, uma sucessão de números pares - uma ideia também presente na história de Cristo em si: a seu redor, orbitam doze apóstolos. Imagens similares podem ser observadas tanto em Catedrais católicas:
Quanto em mesquitas:
O excesso da alma encontra seu escoamento não pelas bordas laterais ou pelos esgotos inferiores, mas ruma em direção ao infinito - ou ao centro -, como o rio que deságua no mar.
Quando o caminho pelo alto é claro, a própria base assume novo significado. Não é mais prisão, mas se torna promessa. Um templo religioso jamais poderá ser apenas base, mas também não poderá ser apenas abóboda. São duas dimensões intrinsecamente relacionada – assim como o complexo corpo-alma e o espírito são dimensões intrinsecamente relacionadas de uma unidade indissolúvel.
[1] SANTOS, Mário Ferreira dos. Tratado de Simbólica (Coleção Filosofia Atual). São Paulo: É Realizações, p. 149.
[2] Idem. Ibid., p. 164.
[3] Idem. Ibid., p. 168.
[4] Idem. Ibid., p. 177.
[5] HANI, Jean. O Simbolismo do Templo Cristão. Lisboa: Edições 70, p. 41.
[6] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 38 e ss.
[7] BURCKHARDT, Titus. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente. São Paulo: Attar, 2004, p. 171.
Texto maravilhoso, Bruno! Fiquei muito feliz pela citação (e também por ver meu amigo Ibrahim aqui mencionado). Um abração!
Sua página, Metaxy, é muito boa, Bruno. Parabéns pelo belo texto, não digo isso por ter sido citado, hehe..., é que você de fato maneja com muita precisão este manancial de dados tradicionais. Sobre o número ímpar no Islam, vale lembrar do hadith em que o Profeta (saws) diz que Deus ama o ímpar (Sahih Muslim, 2677)