Não é nenhum segredo que, no Brasil, a introdução - ou, ao menos, a relativa popularização - de Eric Voegelin se deu no contexto de um desabrochar do pensamento direitista, impulsionado pelo extraordinário esforço de Olavo de Carvalho - e uso o termo extraordinário em seu sentido etimológico. Alias, tenho a opinião de que, entre todos os méritos e deméritos, a maior contribuição de Olavo para o pensamento brasileiro foi a introdução, ou a relativa popularização, de dois autores em especial: Louis Lavelle e o já mencionado Eric Voegelin.
Em algum momento futuro, pretendo tratar de Lavelle. Mas hoje o texto é sobre Voegelin.
Olavo de Carvalho pode ser, sob alguns aspectos, comparável a Jordan Peterson. Ambos são notáveis comunicadores e ambos são homens inegavelmente inteligentes. Ambos têm, ainda, uma produção intelectual de relevo, embora duramente criticada por segmentos acadêmicos que não podem ser simploriamente desprezados. Por fim, ambos tiveram parcelas bastante estreitas de seu pensamento apropriadas por gente muito menos qualificada do que eles próprios, servindo como uma espécie de aporte intelectual ou argumento de autoridade para que estes apropriadores advogassem posições direitistas brutas - e, nada raramente, brutais.
Fenômeno similar, embora de alcance certamente muito menor, se deu com Eric Voegelin. Introduzido no debate público, a ele passaram a recorrer direitistas ávidos por pensadores de relevo que, em tese, sustentariam as próprias ideologias. Mas, enquanto Peterson e Olavo em larga medida de fato se colocaram, cada qual ao seu modo, ao lado dessa massa direitista, Voegelin - e isso deve ser notado - apressava-se em repelir qualquer tentativa de associação de seu nome a ideologias quaisquer.
Era, sem dúvida, um ferrenho crítico do Comunismo - que, a seu ver, buscava sua origem em pensamentos de fundo gnóstico que procuravam “imanentizar a escatologia”, expressão complicada que quer dizer algo muito simples: o Comunismo arroga-se a impossível tarefa de fazer do mundo material um paraíso celestial, rompendo, porém, com a transcendência. Não sei, é verdade, se esta ideia em particular de Voegelin se justifica plenamente, na medida em que o gnosticismo, ao menos em suas linhas mais gerais, caracteriza-se por uma forte recusa à imanência - mas esse é outro ponto, que não nos interessa aqui. Interessa, sim, que se trata de um erudito crítico do Comunismo, e isso, ao que parece, bastou para que brutas mãos direitistas se apressassem, vorazes, em levantar-se em sua direção, apropriando-se de qualquer modo das ideias voegelinianas. Se é anticomunista, afinal, é direitista.
O que falta, porém (como quase sempre, aliás), é uma dose (que, neste caso, nem precisa ser muito grande) de leitura.
Sim: uma leitura minimamente atenta de Voegelin deveria deixar claro que, ao menos em medida similar às críticas ao Comunismo, o erudito filósofo político destila críticas a um pensamento direitista que, a seu modo, também imanentiza a transcendência, - mas, ao contrário do Comunismo, o “direitismo” o faz, muitas vezes, apropriando-se do discurso e dos símbolos religiosos.
Eric Voegelin entende que o problema central da modernidade está no fato de que os símbolos religiosos esvaziaram-se, na medida em que deixaram de refletir a transcendência. Muito de seu pensamento relaciona-se ao fato de que, para que uma sociedade humana constitua um cosmion - termo que utiliza para designar um pequeno universo coeso, fundado em valores tidos por universais, de maneira que uma verdadeira comunidade se constitui -, é imprescindível que a experiência originária de transcendência siga viva. Num cosmion, há uma adequada simbolização da transcendência, forjando um sentido aglutinador para a vida imanente.
O cosmion, assim, pressuporia a metaxy, ou o intermeio. Apenas na medida em que os homens colocam-se verdadeiramente a meio-caminho entre a transcendência e a imanência, materializando na vida concreta inspirações de ordem transcendente, torna-se realmente possível que haja ordem na história. Do contrário - ou seja: quando perdemos de vista a experiência originária -, podemos, certamente, seguir, utilizando símbolos religiosos, mas já sem compreender verdadeiramente seu significado, ou as realidades às quais apontam. Agora, um símbolo como a cruz cristã já pode ser empregado para as finalidades mais diversas: fora de um cosmion verdadeiro, o símbolo, incapaz de refletir realidades superiores, torna-se instrumento potencial para qualquer coisa.
No extremo, podemos, claro, pensar na incorporação da suástica, símbolo religioso consagrado, pela ideologia absolutamente singular do Nazismo: os resultados catastróficos não precisam ser descritos aqui. Penso ainda noutro exemplo: o PCC - refiro-me à facção criminosa brasileira, e não ao partido chinês - tem como um de seus símbolos a magnífica imagem taoista do yin-yang; mas, extraído de seu contexto original, torna-se meramente símbolo de uma maneira de “equilibrar o bem e o mal com sabedoria”, como já li em uma antiga reportagem sobre a facção.
O mesmo se aplica à apropriação, pelo pensamento direitista, da imagética cristã.
A experiência cristã original, para Voegelin, perdeu-se na modernidade. Eu não poderia concordar mais: a cada dia, estou mais convencido de que o Cristianismo ocidental de nossos tempos é, de forma geral, nada muito além de um espectro moribundo, ou uma caricatura no mau sentido do termo, da experiência cristã originária. Voegelin se refere a isso como o descarrilamento.
O apelo de Voegelin pelo retorno à experiência original passa, contudo, absolutamente despercebido pelo direitista ávido por se apropriar da obra voegeliniana. Procede, então, de maneira similar ao que faz com os símbolos cristãos: apropria-se a seu modo, seja do madeiro da cruz, seja de Order and History. E nem digo que o faça necessariamente por maldade pura e simples: as melhores explicações, na maior parte dos casos, me parecem muito mais relacionadas a uma mera falta de compromisso com a compreensão de símbolos ou livros, aliada ao fato de que não somos mesmo capazes de expressar o que vai além de nosso próprio horizonte intelectual. Às vezes - e eu obviamente me incluo neste diagnóstico - podemos ler livros inteiros e, ignorando o que nos desafia, acabamos a leitura sabendo exatamente o que já sabíamos; mas, agora, temos mais uma fonte a supostamente embasar nossas próprias convicções.
Lembro-me da votação a respeito do impeachment de Dilma Rousseff. Na Câmara dos Deputados, foram dezenas de deputados aludindo a Deus sob a luz dos holofotes políticos nacionais. “Deus derruba a presidenta do Brasil”, líamos num texto jocoso do El País à época.
Não quero investigar a fé e a interioridade de cada político, evidentemente: não duvido que haja gente piedosa ali. Mas, se seguimos o pensamento de Voegelin, podemos concluir o óbvio: é perfeitamente possível que, num mundo como o nosso, em que a experiência religiosa original já se encontra quase de todo perdida sob as névoas dos tempos, mesmo o signo linguístico “Deus” - que é também a seu modo um símbolo: como aprendemos nas primeiras aulas de Filosofia, a palavra “leão” não é o mesmo que um leão - pode muito bem tornar-se instrumento a ser utilizado para qualquer fim, mesmo os mais baixos. E isso atende pelo nome de idolatria.
Se, então, o nome de Deus, ou de Cristo, torna-se associado a pautas absolutamente alheias ao Cristianismo, quando não clamorosamente anticristãs - louvor à violência, apelo pela disseminação do porte de armas, vocalização de lemas como “bandido bom é bandido morto”, discursos de ódio, descaso ambiental etc. -, temos um sintoma bastante claro de que, de fato, jamais era mesmo sobre Deus, sobre Cristo, sobre a cruz. Era sobre coisa muito diversa - era sobre ideologia. E Voegelin insiste em seu clamor: não quer ser associado a qualquer “ismo” ideológico, e não apenas ao Comunismo.
O fato é que, quando tomamos por tradição ou por Cristianismo o que é apenas seu eco morto, torna-se cada vez mais difícil retomar a experiência original que seria necessária à constituição de um cosmion, de uma comunidade verdadeiramente ordenada.
Em certo sentido, isso é, de fato, muito pior do que o Comunismo declaradamente ateu. O ateu não se arroga posições de representante divino. O direitista o faz. É representante de Deus, de Cristo, da Bíblia, de Voegelin, do que for. Cada uma dessas palavras, dessas realidades, dessas pessoas, torna-se também eco morto. Torna-se nada. Torna-se instrumento de vociferação de um coração que, crendo-se religioso, dificilmente poderia estar mais distante da experiência cristã autêntica.
E, disseminada mais e mais essa compreensão torpe do Cristianismo, o Cristianismo verdadeiro é também mais e mais varrido do horizonte.
Como, então, dar passos em direção à experiência originária do Cristianismo?
Essa resposta exige, claro, novas reflexões, que deixarei para um próximo texto.
Bravo, Bruno! A crítica (lúcida) à direita brasileira é fundamental e urgente.