Há não muito tempo, li um artigo de Paul Kingsnorth – de quem gosto muito, aliás – tratando do Ocidente como um projeto a ser abandonado. Não há mais conserto, diz ele: de nada adianta lutar por reconstruir uma suposta tradição ocidental já de todo perdida etc.
I want to say that this ‘West’ is not a thing to be ‘conserved’: not now. It is a thing to be superseded. It is an albatross around our necks. It obstructs our vision. It weighs us down. Sometimes, you have to know when to let go.
É, de fato, uma ideia tentadora. A visão de Kingsnorth parte de muitos pressupostos parecidíssimos com os meus próprios, quando não precisamente os mesmos. Como ele, testemunho com enorme desesperança os rumos progressistas que tomaram o Ocidente já há tempo demasiado. E, como ele, também testemunho, talvez com ainda maior desesperança, quase tudo o que há por aí de ímpeto reacionário ou conservador, seja no campo político ou no campo das ideias. Poucas coisas me trazem mais desesperança do que assistir à enorme maioria dos influencers supostamente tradicionalistas de alguma popularidade.
Há legião inumerável que busca a tradição em qualquer passado próximo – um “tradicionalismo Jovem Pan”, posso arriscar-me a dizer, para o desespero dos puristas que não admitiriam a conjugação desses termos numa mesma construção: perdoem-me por isso. Apenas tento me fazer compreender. Falo de tantos e tantos que, diante dos horrores de nossos tempos, acreditam que bom mesmo seria recuarmos algumas décadas – talvez paremos ali nos anos 80 ou 90, talvez nos anos 60 ou 70.
Eu entendo, devo confessar. Genuinamente entendo esses anseios. Eu mesmo, puxando pela memória uma infância vivida um pouco nos anos 80, e majoritariamente nos anos 90, também gostaria de retornar para algo como aquilo. Para ser sincero, qualquer mundo em que as pessoas não carreguem um smartphone pessoal conectado à internet me parecerá muito superior ao nosso. Mas, convenhamos, talvez um mundo de Aqui e Agora e Banheira do Gugu, embora possa ter lá seus encantos, não parece exatamente um mundo bom.
É claro que há os que vão mais longe. De um lado, têm muito maior razão. De outro, são muito mais tolos. Explico-me a seguir.
Há os que enxergam, e muito bem, que a crise já estava muito bem estabelecida e consolidada nos anos 60, 70, 80 ou 90. Claro: o navio navegou muitas e muitas léguas nessas décadas, e mais ainda desde a virada do milênio; mas, antes dessas décadas, já havia navegado, e muito. Vão, então, muito mais longe. Alcançam as revoluções iluministas, em especial a francesa, e lá detectam o marco fundamental do início do fim da Cristandade. Esse conceito é importante: Cristandade e tradição ocidental são termos em boa medida intercambiáveis. Buscar uma tradição ocidental seria, portanto, buscar uma Cristandade que, desde as revoluções burguesas, perdia a guerra contra o espírito moderno.
Esse tradicionalista em busca da Cristandade tem grande chance de devorar as páginas escritas por Plínio Correia de Oliveira, Henri Delassus, Joseph de Maistre, Donoso Cortés e outros. Novamente, eu entendo. Entendo perfeitamente bem o encanto de muitas dessas páginas. Tenho resistência – devo admitir – a Revolução e Contra-Revolução, mas considero Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo, por exemplo, uma obra belíssima. Plínio veio muito depois; de Maistre e Donoso Cortés, porém, eram testemunhas oculares de um mundo que desmoronava diante de seus olhos: claro que lutavam como podiam.
Mas como dizem os americanos, normalmente em contextos muito menos filosóficos: That ship has long sailed. O navio zarpou há tempo demais – eu diria, mas talvez deva ser assunto para outro texto, que zarpou ainda muito antes das revoluções iluministas. Talvez antes mesmo do Renascimento. Paul Kingsnorth parece ter boa dose de razão. Olhando para o horizonte, não há mais sombra do navio. Sejamos honestos: hoje, em 2023, a que poderão levar lutas tradicionalistas por reviver forçosamente uma Cristandade já tão, mas tão distante de nossa vida cotidiana?
Podemos, de fato, imaginar que seja remotamente possível a reconstrução de uma sociedade ocidental que torna a ter a transcendência como centro e meta suprema? Podemos imaginar as maiores universidades gravitando em torno da Teologia, o badalar de sinos eclesiais marcando o ritmo de nossas vidas, uma moralidade religiosa amplamente observada? Faz algum sentido lutar por essas coisas. That ship has sailed so long ago, pal.
Um dos meus pequenos prazeres – eu, que por circunstância da vida transito em grupos de “direta” e de “esquerda” – é testemunhar a direita criticando-se a si mesma, e a esquerda criticando-se a si mesma. Estou sinceramente cansado das críticas que um lado faz ao outro. As críticas internas são bem mais saborosas.
E, num livro bastante celebrado pela nova direita, tive o prazer de encontrar algumas dessas páginas saborosas. Em False Dawm, traduzido recentemente para o português, Lee Penn preenche perto de setecentas páginas falando sobre a esquerda, o globalismo, a religião universal e esses temas a esta altura já meio batidos. Mas, no final, ainda tem fôlego para reservar o último capítulo a uma crítica feroz à própria direita.
A crítica que ele faz gravita em larga medida em torno de uma citação de C. S. Lewis, que aqui repito:
Quanto mais altas as pretensões de poder, mais opressivo, desumano e intruso se tornará. A teocracia é o pior entre todos os governos possíveis. Todo poder político é, no melhor caso, um mal necessário; mas é menos ruim quando suas sanções são modestas e ordinárias, quando não pretende ser nada além de útil ou conveniente, e se impõe objetivos estritamente limitados.[1]
Os tradicionalistas que vão mais longe do que um recuo de algumas décadas estão, como eu dizia, mais certos, mas também são mais tolos. A maioria contenta-se com um combate ao Comunismo. Os mais firmes em sua busca compreendem que o Comunismo é apenas uma face de um problema muito mais amplo, cuja contraface é o Liberalismo e que consiste, em suma, na mentalidade moderna. Querem, assim, combater a mentalidade moderna. Até aqui, tudo bem. Eu mesmo não sou um grande fã da mentalidade moderna, do Comunismo ou do Liberalismo. Estamos juntos. Mas não por muito tempo.
Problemático é o passo seguinte: a luta política. Agora, as coisas começam a enveredar por um caminho perigoso. Quem diz luta política diz luta por poder. Poder material. Poder de mandar e desmandar, de fazer leis e exigir obediência, de estabelecer metas e fazê-las cumprir. Há, claro, aqueles que se contentam com lutas pontuais – muitíssimo legítimas, devo salientar. É bom que haja quem lute em frentes de batalha ainda abertas. A descriminalização ampla do aborto, por exemplo, é realidade cada vez mais próxima, e tenta chegar ao Brasil por todos os meios possíveis: se não for pelo Legislativo e pelo Executivo, será pelo Judiciário. O cenário está montado. Mas este navio ainda não zarpou.
Lutas pontuais nada têm de problemáticas: fazem sentido, como fazia sentido que Donoso Cortés, em seu tempo, travasse suas lutas muito mais abrangentes. A estratégia de batalha passa, desnecessário dizer, por conhecer o terreno – no nosso caso, o terreno é o mundo do século XXI em seu todo, ou ao menos o Brasil do século XXI, que guarda pouquíssima relação com a Espanha de Cortés, duzentos anos atrás. Quando as forças da conservação bradam hinos monarquicamente autoritários em busca de uma Cristandade perdida, querendo reconstrui-la à força bruta, o clichê esquerdista lhes serve perfeitamente: perderam o bonde da história. Ou: that ship has sailed, pal.
Olhemos o horizonte. A realidade estabelecida é a realidade estabelecida. Poucas coisas podem ser mais ridículas – e perigosas – do que o flerte, em nossos tempos, com uma teocracia cristã. “Quanto mais altas as pretensões de poder, mais opressivo, desumano e intruso se tornará” – dizia Lewis. Não tenho qualquer dúvida de que muitos entre os novos cristãos, desta nova direita, adorariam ter em suas mãos um poder opressivo, desumano, intruso. Não parece despropositado, aliás, notar que um dos grandes símbolos dessa nova direita seja justamente a arma de fogo. Em nome de Cristo.
Ao encarar cristãos com armas em riste diante de um oceano vazio, Kingsnorth tem toda a razão ao preferir abandonar qualquer tentativa de resgate da tradição ocidental. O querem, de fato, os resgatadores, afinal? Aonde haverão de desembocar, em caso de seu improvável sucesso político, senão num tenebroso palco de cujo cume vociferarão, armas em riste, verdades cristãs? A reconstrução da Cristandade nada será além de falsificação pura e simples, simulacro, sombra de sombra, paródia ditatorial e assassina de uma tradição cuja essência lhes escapa absolutamente. Será o golpe fatal contra o Cristianismo, desferido pelas mãos sangrentas daqueles que julgam defendê-lo. Já tivemos vislumbres disso aqui e ali.
Mas não há apenas um resgate teocrático e total: a guerra não se resume a isso. Há, como visto, lutas menores e legítimas. E há mais: estratégias radicalmente diversas.
René Guénon é de enorme auxílio aqui. Em diversos momentos, faz uma distinção clara entre o poder real e a autoridade espiritual. O tema é bastante complexo. Alain de Benoist dedicou um ensaio a distinguir as relações entre tais termos em Guénon e Julius Evola. Para Benoist, Evola tem uma leitura segundo a qual a autoridade espiritual está como que subordinada ao poder real – e isso o leva, naturalmente, a dar grande valor e ênfase a movimentos políticos de matriz autoritária, alguns dos quais, ao que parece, buscaram no próprio Evola sua fundamentação teórica. Podemos dizer que, ao menos nessa leitura de Benoist, uma direita armada, sedenta de sangue, sedenta por reconstruir autoritariamente uma Cristandade perdida, justifica-se aos olhos de Evola. Mas, acredito, não aos olhos de Guénon.
Isso porque, para Guénon, o poder real está indubitavelmente num patamar inferior, qualitativamente, em relação à autoridade espiritual. Se esta última corresponde, dentro da estrutura hierárquica hindu, aos Brâmanes, o poder real corresponde aos Kshatryas. E, segundo Guénon, um traço característico do caminho de dissolução do mundo – o trajeto em direção ao “reino da quantidade”, em oposição ao da qualidade – é que seu passo inicial se dá justamente pela revolta dos Kshatryas contra os Brâmanes. É, simplificadamente, o poder real que se insurge contra a autoridade espiritual.
Claro que, a posteriori, novas insurreições acontecem, mas meu foco, aqui, é outro. O ponto a que desejo fazer o leitor atentar-se é que, segundo Guénon – e acredito que ele tenha enorme dose de razão neste particular –, a partir do momento em que o que é inferior passa a insurgir-se contra o que é superior, a tragédia tem início. Podemos pensar, claro, na civilização em seu todo. Mas a mesma lógica se aplica à esfera pessoal: a partir do instante em que deixamos de submeter-nos ao que nos é infinitamente superior, à transcendência, e nos fiamos tão-somente em nossas capacidades imanentes, a tragédia tem início – é o que, no contexto bíblico, fica muito bem simbolizado pelo termo queda. A queda é, fundamentalmente, mergulho em um estado inferior de ser.
Pois bem. Se, diante da tragédia escancarada de um mundo dilacerado, entendemos que é pela via política que conseguiremos remediar as coisas em seu todo – veja-se: batalhas particulares podem ser provisoriamente ganhas por meio de lutas políticas; a guerra em seu todo, jamais –, o que fazemos, no fundo, é perpetuar ainda mais a queda. Pela espada caímos, pela espada queremos levantar-nos. Mas calma! O que diz Jesus Cristo, senão o perfeito oposto? O que diz a Pedro, quando, pela espada, revoltoso diante da via crucis iminente, desfere o golpe e corta a orelha do soldado romano, senão o perfeito oposto? Pela espada, talvez não apenas perpetuaremos a queda: cairemos em lodos ainda mais profundos.
O que Guénon sugere é caminho muito diverso. É caminho pelo alto. As coisas realmente importantes não se modificam por baixo, mas pelo alto. Diante de tentativas atabalhoadas de agir rasteiramente, com armas em riste, Kingsnorth olha para os resgatadores da tradição com desesperança. E como tem razão! Se é assim que queremos “salvar o Ocidente” – bem, se é assim, melhor deixá-lo ir, mesmo. Melhor abandoná-lo, como se abandona um navio já sem salvação, invadido pelas águas: que submerja de uma vez, pois, se continuarmos tentando salvá-lo, afundaremos junto.
Mas não tem que ser assim. Há outros caminhos. Há batalhas pontuais. E há, no grande cenário, o esforço mais elevado. É, sim, esforço no campo da cultura – pois a cultura está acima da política. É esforço que muitos já compreenderam, neste terreno cultural em que, felizmente, muitos hoje se aventuram.
Há, enfim, outras formas de batalha para além da bruteza física, das armas em punho, dos sonhos teocráticos impossíveis e potencialmente terríveis. Há batalhas que vão muito, muito além de tudo isso. Há, aliás, aquelas que vão ainda além da cultura. Mas, por ora, delas não tratarei: ficam aqui meramente sugeridas – no futuro, talvez eu venha a explicitá-las. Explícita – inquestionável, melhor dizendo – é a ojeriza de Kingsnorth e Lewis pelas batalhas brutais, pelos sonhos direitistas com um poder opressivo, desumano, intruso; e é a certeza, também evangélica: foquemos no que é mais elevado. O que é rasteiro seguirá.
[1] C. S. LEWIS. The World’s Last Night and other essays. Harcourt Brace Jovanovich, 1973, p. 40.