Deive Leonardo e o Cristianismo da Kali Yuga
Um pastor bomba na Netflix. E eu acho que isso vale um texto.
Era sábado à noite. Para quem tem filhos pequenos, isso não significa lá tanta coisa - mas significa alguma coisa. Esposa no quarto da filha que enrolava para dormir, bebê no outro quarto podendo acordar a qualquer momento, eu na sala. Nessa fase da vida, sábado à noite não é dia de balada. Mas é dia de um filme e de dormir um pouco mais tarde - quase uma rebeldia. Lá estava eu, então, zapeando pelo catálogo da Netflix. Ameacei experimentar um capítulo da série do Senna. Mas, nem sei bem por quê, acabei abrindo um documentário - não sei se aquilo era um documentário - sobre o pastor Deive Leonardo.
Não entrei nessa como um completo desavisado: já tinha visto em algum lugar - talvez em algum Esporte Espetacular, não tenho certeza - que era o “pastor do Neymar”. Isso, na época, já me trouxe uma série de conclusões sobre o pastor - mas não quero expô-las aqui, porque eram conclusões que vinham do mais puro preconceito. É bom que Neymar Junior tenha seus guias espirituais. Talvez sua carreira tivesse sido melhor se ouvisse mais Deive Leonardo. Não sei. Mas já estou indo longe demais aqui. Voltando: tentei deixar os preconceitos de lado e ver de que se tratava aquele documentário.
E não era mesmo bem um documentário. Era uma pregação. Na verdade, estava mais para um grande show. Palco no centro - não sei se é desrespeitoso falar “palco” neste contexto, mas aquilo é um palco no centro, objetivamente falando. Um bonito espetáculo de luzes dançantes. Uma música suave. A plateia lotava as arquibancadas por todos os lados. E, ao centro, surgia a estrela da noite - um misto de galã sertanejo e Chicó d’O Auto da Compadecida (o que não é uma crítica).
Deive Leonardo parece, na maior parte do tempo, uma estrela de stand up. Sua maior preocupação parece ser arrancar risos do público a partir de temáticas religiosas. Isso, por si, merece uma primeira reflexão mais aprofundada. A religião é muitas vezes um salvo conduto para apresentações artísticas de qualidade inferior. É o caso frequente da música (não falo obviamente da música religiosa tradicional, mas da moderna - que não é outra coisa senão a apropriação de estilos musicais perfeitamente seculares, apenas substituindo a letra secular por uma religiosa): quase invariavelmente, são produções de qualidade bastante inferior às seculares de mesmo estilo; mas, como falam de Jesus etc., a crítica do público-alvo é imediatamente reduzida. No espetáculo de Deive Leonardo, fenômeno similar acontece: suas piadas são muito piores do que as de qualquer stand up de qualidade mediana, mas, já que as piadas envolvem Jesus, Pedro ou João, a plateia ri com gosto. É um caso curioso.
Mas o grande mérito de Deive Leonardo é a capacidade de, num instante, passar de um tom piadístico para outro profundamente emotivo. A plateia ainda está rindo quando, de repente, a iluminação muda, a música assume tons melodicamente suaves, a voz do pastor se altera. Vem uma mensagem: Jesus sempre surge nos momentos mais difíceis. A passagem evangélica é a da tempestade e do andar sobre as águas. Claro que não há qualquer aprofundamento teológico, mas há a mensagem que quer - e consegue - tocar fundo naquelas pessoas imersas naquele ambiente perfeitamente pensado para produzir este efeito. Num momento, Deive Leonardo imita jocosamente o caminhar de Jesus e a reação de Pedro; no momento seguinte, a luz baixa, a música muda o tom e todos ouvem o que precisam ouvir: nas piores tempestades da vida, Jesus surgirá.
O texto talvez tenha assumindo um tom que, a princípio, preferiria evitar. Embora ache que tudo isso tenha sua graça, não quero fazer piada. É coisa séria. Falo sério quando digo que Neymar teria provavelmente uma carreira - e uma vida - muito melhores se ouvisse mais Deive Leonardo. Esse Cristianismo popular e emotivo - talvez a melhor descrição seja mais ou menos essa - tem seu valor enorme como, eu diria, divulgador de uma mensagem cristã muito simples: a de que, por mais dolorido que seja, precisamos tentar ser boas pessoas. Muita gente norteia suas vidas por essa ideia apenas porque essa mensagem lhes tocou; e, se tocou, foi por obra de gente como Deive Leonardo. Um espetáculo de Deive Leonardo é combustível para que, pelos dias seguintes, muita gente siga em seu esforço de ser boa pessoa, apesar de tudo.
Isso não é pouco. Indo ainda mais além: nos presídios brasileiros, não é o Cristianismo profundo, dos Santos Padres, o que entra. É a mensagem de Deive Leonardo. É o neopentecostalismo. A Igreja Católica, em cuja história se encerram tesouros valiosíssimos, apresenta aos presídios quase nada além de sua faceta caritativa-marxista, via Pastoral Carcerária. O neopentecostalismo penetra. Consegue alcançar espaços inalcançáveis. Nas dependências prisionais, muros e grades adentro, é a mensagem neopentecostal que separa os presos evangélicos dos demais. Porque são cristãos, demonstram querer ser boas pessoas. Isso basta para meses e anos mais tranquilos.
Os profetas da Kali Yuga são naturalmente os primeiros a resmungar: o fato de um Deive Leonardo se apresentar como representante do Cristianismo para uma multidão é um forte sinal dos tempos; fujamos para as montanhas; façamos guerra cultural; etc. OK. Não tenho qualquer dúvida de que o Cristianismo, no curso dos tempos, de fato se desvirtuou em larga medida - seja em seu componente místico, seja como força de amálgama comunitário. Não é preciso seguir Guénon ou ser um radtrad católico para concluir isso: gente da estirpe de um Eric Voegelin ou de uma Hannah Arendt, em suas reflexões sobre a crise das tradições e a erosão dos fundamentos transcendentes na modernidade, já chegaram a ideias similares.
Mas, como diz o salmista, este é o dia que o Senhor fez para nós.
Podemos pensar o Cristianismo como uma pirâmide em cujo topo estão, sim, suas manifestações mais sublimes. Mas quantos cristãos se interessam, de fato, por um São Máximo, um São Clemente, um São João da Cruz? O alcance talvez apenas se dê pelo sacrifício da profundidade - ou, como diria Guénon, a quantidade implica o sacrifício da qualidade. Claro que há algo de ruim nisso. Claro que eu adoraria que, ao centro de uma multidão, não falasse um Deive Leonardo sobre as reações cômicas de Pedro ao ver Jesus sobre as águas, mas falasse um São Gregório de Nissa sobre o sentido simbólico das águas sobre as quais Jesus caminhava. Mas o alcance custa a profundidade. Talvez, a grande parte de toda aquela gente, a mensagem cristã, mesmo diluída, não pudesse chegar a não ser por um Deive Leonardo.
Deive Leonardo tem mais de 10 milhões de inscritos no YouTube e mais de 16 milhões de seguidores no Instagram. Acabo de verificar os números.
As verdades, porém, se sobrepõem.
Reconhecer o valor de Deive Leonardo - com suas piadas não tão boas, suas efusões sentimentalistas, sua pirotecnia tecnológica, suas dezenas de milhões de seguidores etc. - não exclui o fato de que, para muito além disso, o Cristianismo precisa, e muito, de São Clemente, São Gregório, São Máximo, São João da Cruz, Santa Teresa. Precisa do alcance. Mas precisa, sobretudo - e muitíssimo mais - da profundidade. Sem a qualidade (e nisso Guénon estava certo), a quantidade perde o sentido, a chama, a vida. Um Cristianismo de puro alcance, ou de pura quantidade, bem pode tornar-se, ao final, uma pura subversão: não apenas uma religião esvaziada, mas uma religião efetivamente tomada. Altares e símbolos religiosos, quando ceifados da Verdade profunda que os deveria animar, são facilmente tomados por forças opostas.
Por que estou dizendo tudo isso? Talvez - refletindo aqui agora, enquanto escrevo - para me ordenar interiormente (na verdade, quase sempre é para isso que escrevo). Assistir a Deive Leonardo me incomodou, devo confessar. O Cristianismo não pode ser isso! - eu pensava para mim mesmo. Entendo meu incômodo, mas eu estava errado. O problema não é o Cristianismo ser aquilo. Deive Leonardo tem seu lugar - e que bom! Se Neymar resolver ouvi-lo mais, talvez o hexa se torne ligeiramente menos improvável. O problema é o Cristianismo ser somente aquilo.
O problema é que, olhando para outros lugares - justamente onde seria legítimo desejar encontrar as profundidades maravilhosas do Cristianismo -, também não as encontramos. É aí que as coisas se confundem. Fosse a maravilha cristã contemplável àqueles que a buscam - tradição viva, santos entre nós, palavras de profunda sabedoria, guias espirituais sobre os quais não haja dúvidas de que percorreram longamente o caminho, liturgias verdadeiramente belas etc. -, poderíamos, também, nos voltar a um Deive Leonardo tomando-o tão-somente por aquilo que ele é: um divulgador horizontal; alguém que amplifica a mensagem, mesmo que diluída, levando-a aonde não chegaria de outra forma. Tudo estaria bem, porque haveria integridade.
Mas, sem integridade, aquele documentário da noite de sábado me incomodou. E a culpa - só agora o percebo claramente - nem de longe era de Deive Leonardo.
O cristão pentecostal muitas vezes tem muita simplicidade e tanto desespero por ser curado por Cristo, que ele só quer tocá-lo, como a mulher que tocou na orla das vestes de Jesus em meio à multidão. A orla da veste não é o próprio Cristo, mas mesmo assim Ele percebeu que foi tocado, pois era a mão que buscava desesperadamente a cura que o tocava. A orla, de certa forma, "amplia" a pessoa de Cristo, aumenta o seu alcance.
Maravilha de texto e de comentário. Parabéns aos envolvidos. Salve Maria Imaculada, nossa terra santa.