Há uma ideia bastante conhecida segundo a qual as grandes religiões têm um componente exotérico, ou exterior, e um componente esotérico, ou interior-místico (aliás, pessoalmente prefiro o termo místico a esotérico, razão pela qual daqui em diante utilizarei mais aquele do que este). Isso aparece muito claramente entre os ‘perenialistas’, mas não só. O estudo comparativo das religiões tende também a acomodar essa divisão.
É uma divisão esquemática, evidentemente. É bastante visível no Islamismo, em que o Sufismo corresponde muito claramente à dimensão mística, ou mesmo no Judaísmo - cujas correntes místicas, em especial a Cabala, são muito conhecidas. A fronteira é, contudo, mais nebulosa noutros lugares. Nas tradições chinesas, por exemplo, não é incomum a ideia de que o Confucionismo responderia pelo exoterismo e o Taoísmo, pela mística. Nas tradições hindus - ainda que encontremos, aqui e ali, referências ao Vedanta, por exemplo, como o núcleo esotérico do Hinduísmo -. a mística parece de tal forma disseminada na vivência cotidiana que a distinção clara entre uma dimensão exterior e outra interior é praticamente impossível: uma divisão que se dá, certamente, dentro do sujeito, mas não na religião em si.
Frithjof Schuon argumentou que, no Cristianismo, teríamos algo parecido. Os sacramentos, em especial a Eucaristia, corresponderiam a um núcleo místico - que, porém, é popularizado, estendendo-se ao todo da religião. É neste sentido que há interpretações perenialistas - como a de Jean Borella - sobre o rompimento do véu do templo: episódio evangélico que demonstraria o fim da divisão entre o esotérico e o exotérico.1
A realidade histórica do Cristianismo parece-me, contudo, mais intrincada.
O que observamos no Ocidente, com especial força a partir dos eventos dos séculos XI e XII - refiro-me ao Grande Cisma e à Reforma Gregoriana, que centralizava o poder nas mãos do Papa em níveis inéditos -, é uma divisão bastante peculiar. Por um lado, o nascente legalismo ganhou força ao longo dos séculos do segundo milênio, o que se viu, por exemplo, no combate aos hereges. Como efeito colateral quase inevitável, a mística, que passava a encontrar terreno especialmente difícil no seio da Igreja Ocidental (podemos pensar em diversos exemplos de místicos hoje santificados que, em seu tempo, sofreram terrível perseguição pelas hierarquias), buscava espaço na heterodoxia. A mística - certamente não em seu todo, mas em larga medida - tornava-se heresia.
Foi inevitável, assim, que a história do Cristianismo ocidental passasse a se caracterizar pela proliferação de seitas. Conforme o poder da Igreja se enfraquecia, essas seitas podiam vir mais e mais à luz. Não é sem sentido a aposta de René Guénon de que o lado esotérico do Catolicismo estaria, por exemplo, na Maçonaria. Mais recentemente, não é incomum que se fale genericamente de gnosticismos como os portadores históricos da mística cristã não admitida pela Igreja Católica Romana: abundam, por exemplo, textos maçônicos, teosóficos, antroposóficos ou rosacruzes apresentando uma suposta revelação de verdades cristãs ocultas, e a descoberta arqueológica recente de Evangelhos apócrifos apenas fortaleceu essa linha de argumentação.
Neste assunto, as posições de Guénon e Schuon são representativas de posições bastante sólidas, seguidas por muitos. Para Schuon, como visto, a divisão entre esoterismo e exoterismo não se aplica ao Cristianismo, cujos sacramentos serviriam de ponte entre ambos os lados. Para Guénon, estaria por excelência na Maçonaria a mística cristã, embora os próprios maçons não parecessem fazer muito jus a tamanho tesouro - e, com o tempo, não faltaram grupos, para muito além da Maçonaria, arrogando-se a função de portadores e protetores do esoterismo perdido.
Provavelmente há uma parcela de verdade em cada uma dessas posições. Não negligencio o caráter místico dos sacramentos, nem a possibilidade de grupos heterodoxos terem, historicamente, se apropriado de porções do Cristianismo que a Igreja combatia.
Parece-me, contudo, que, enquanto Guénon excede, Schuon aborda a questão parcialmente.
Guénon excede para o lado herético, localizando em um grupo enfaticamente contrário à Igreja Católica - o que foi demonstrado diversas vezes ao longo da história - a essência mais nobre da própria Igreja.
Schuon e Borella têm razão, a meu ver, na defesa de que a mística está entranhada na própria vida sacramental. Não nego, em nenhuma medida, o profundo mistério eucarístico, sangue derramado “por vós e por muitos”. Parece-me, porém, que há ainda um aspecto do caminho místico cristão que não pode ser negligenciado.
Acredito que, para compreendermos de maneira mais abrangente o problema envolvendo a ausência - em boa medida, ao menos - da mística cristã ocidental, devemos buscar a sua origem, que julgo remontar justamente ao inicio do milênio passado, marcado pelo Cisma e pela Reforma Gregoriana.
Isso porque, com a centralização legalista da Igreja Romana em torno do Papa - cujos poderes jamais haviam sido tão grandes -, e com a cisão entre a Igreja Ocidental e a Oriental, uma larga porção da tradição cristã era defenestrada, e pouco a pouco esquecida.
E essa porção defenestrada escondia em si um tesouro especialmente valioso: o hesicasmo.
Tenho a palpite - por enquanto, mero palpite - de que justamente no hesicasmo se esconde a essência mesma do caminho místico cristão por excelência.
O caminho místico hesicasta é muito bem pavimentado: detalhadas instruções sobre a forma de orar, a posição do corpo, o ritmo respiratório etc. É no hesicasmo que está, por excelência, o apelo cristão por silêncio interior. No Ocidente, a oração costuma ser falada, racionalizada, discursiva; eventualmente, imaginativa. O caminho hesicasta - como, aliás, o caminho místico de todas as tradições - é avesso a discursos e a imaginações. Nisso, muito mais do que em qualquer outro ponto, me parece estar a essência da mística.
E é uma mística que se espalha na vivência cotidiana. O hesicasmo, como os ortodoxos dizem até hoje, é a alma da Ortodoxia, ou é a própria Ortodoxia. Poucas afirmações poderiam melhor expressar o significado do rompimento do véu do templo.
A Igreja Católica tem nas últimas décadas, é verdade, tentado reviver de alguma forma a dimensão mística.
Vemos, por exemplo, o surgimento de um Thomas Merton e seus livros valiosos. Vemos a meditação cristã, com grupos espalhados por vários países. Vemos, ainda, a “oração de centramento” (“centering prayer”). No Brasil, as inovações a partir do Vaticano II significaram - e creio não haver qualquer polêmica no que vou dizer aqui - uma imensa protestantização da Igreja. A abertura, contudo, não se limitou a isso: não sei se é um caso isolado ou representativo de uma realidade maior, mas há não muitos anos, quando visitei a cidade australiana de Melbourne, onde havia vivido em 2008, fui a algumas missas em que o sacerdote, recorrendo a incensos e músicas instrumentais suaves, parecia transformar a paróquia em um ashram.
Tudo isso, porém, vem aos atropelos. São tentativas a meu ver válidas, mas atrapalhadas. Já fui, aliás, a um retiro de meditação cristã em que as sessões meditativas eram precedidas por alguns minutos de yoga - sem mencionar que a meditação em si se faz a partir de um mantra cuja razão de ser, mais do que seu significado, é a sonoridade: Maranatha.
Enfim: a busca do esoterismo perdido, negligenciado por séculos, hoje tende a tomar a forma, no Ocidente, de um ecumenismo bastante vulgar. Ainda assim, movimentos como o da meditação cristã, se podados de alguns excessos ecumênicos, dão-me esperanças: devem, a meu ver, ser tomados muito a sério, pois há tesouros ali.
Quando o véu do templo se rasga, a divisão enfática entre um lado ritualístico-dogmático e um lado místico-esotérico se desfaz. Esse parece mesmo ser o simbolismo da passagem evangélica.
No Ocidente, de alguma forma o véu parece ter sido refeito, aos remendos. Ou melhor: em vez de um véu interior, no seio da própria tradição, construiu-se um imenso muro exterior, e a mística foi relegada para além do muro.
Claro: alguém pode lembrar de uma Santa Teresa de Ávila ou um São João da Cruz, místicos de primeiríssima grandeza e doutores da Igreja. Mas não podemos ignorar suas vidas e as imensas provações infligidas a eles pela própria Igreja. Há dois lados em suas histórias. Sem a Igreja, seus ensinamentos, seus dogmas, seus ritos, suas vivências etc., não chegariam às alturas de suas experiências místicas: não subiriam o Monte Carmelo. Por outro lado, quantos outros potenciais santos não subiram o Monte Carmelo precisamente pela postura resistente dos prelados diante da mística?
Enfim: podemos imaginar que Santa Teresa e São João foram, a um só tempo, místicos de primeira grande por causa e apesar da Igreja.
Se algo da mística se manteve sob a proteção da tradição, muito da mística buscou refúgio no além-muro. Em seitas, em grupos heréticos, em Igrejas reformadas. Forjava-se uma divisão muito mais enfática do que o véu do templo. Claro que isso é problemático, além de perigoso: o par e o ímpar, a estrutura sólida e a liberdade da mística, apenas se harmonizam em conjunto.
Depois, com o aggiornamento e a abertura recente da Igreja, tenta-se reconciliar o que por séculos ficou afastado. Claro que as coisas não são tão simples. Ainda assim, algo como a meditação cristã me parece um fruto bastante benéfico da abertura - justamente na medida em que se aproxima ao hesicasmo.
Parece-me, enfim, bastante plausível que a passagem evangélica sobre o rasgo do véu deve ser interpretada, também, à luz do hesicasmo.
Ou: deve ser interpretada à luz da Igreja tal como se desenvolveu originalmente, antes do Cisma.
É quando lemos a Filocalia, por exemplo, que sentimos o aroma de uma mística viva, presente, disseminada, perfeitamente cristã. E não apenas perfeitamente cristã no caminho, mas sobretudo na meta: uma purificação pessoal que em nada se assemelha à aniquilação a que levam algumas místicas orientais; um esvaziamento do nosso falso-eu para que se revele nosso ser pessoal verdadeiro, capaz de encontro com o próximo e com Deus.
O véu do templo se rasgou. O santo dos santos se fez acessível.
O rasgo do véu é o símbolo de uma união profunda.
Mas, no curso da história, a Igreja forjou seus próprios muros. Pelo Cisma, dividia-se em duas. Pelos muros da resistência à mística e do fechamento sobre si mesma, viu-se dividida em mil fragmentos do que um dia fora.
Talvez jamais conheçamos, ao menos no Ocidente, a verdadeira dimensão mística do Cristianismo se não formos capaz de remontar a integridade perdida.
Neste sentido, o texto “The Torn Veil” de Borella, conhecido perenialista cristão: https://archive.org/details/JeanBorella_TheTornVeil/page/n9/mode/2up