Wolfgang Smith e uma irreconciliável oposição entre o Vedanta e o Cristianismo
Caminhos diversos, ápices diversos
Um alerta ao leitor: este texto entrará num terreno da mais elevada especulação metafísica. Tratará de estados do ser sobre os quais – devo confessar – eu, pessoal e experimentalmente, não posso afirmar nada, absolutamente nada.
Creio que o leitor destas linhas provavelmente conheça, ao menos superficialmente, Wolfgang Smith. Não tenho qualquer capacidade de julgar a grandeza de um acadêmico das exatas, mas, ao que tudo indica, trata-se de um prodígio: com menos de 20 anos, já era bacharel em física, matemática e filosofia, e mestre em física; pouco depois, tornava-se doutor e seria professor de renomadas instituições, como o MIT. Em paralelo, era fascinado pelo tema das religiões comparadas, tendo passado um tempo de sua vida na Índia e mergulhado profundamente em estudos perenialistas – Guénon, Schuon, Coomaraswamy etc.
Alguns de seus livros foram traduzidos para o português. Destaco, em especial, Cosmos e Transcendência: leitura agradável que, entre outros pontos, disseca aspectos importantes da obra de Freud e Jung – este último, aliás, muito me interessa, e meu primeiro artigo aqui publicado, sobre Jung, vai em linhas muito similares às escritas por Smith.
Mas o que pretendo, aqui, não é tratar de coisas ditas ou escritas por Wolfgang Smith há anos ou décadas. Quero tratar de coisas ditas e escritas por ele agora.
Ainda não tive a oportunidade de ler seu último livro, Vedanta in Light of Christian Wisdom. Mas, gastando parte do meu tempo livre no Youtube – hábito que às vezes julgo de alguma utilidade, outras vezes absolutamente inútil; de qualquer modo, é hábito que devo confessar: talvez seja, hoje, minha maior concessão ao mundo moderno, empatada com jogos do Palmeiras –, deparei com deliciosas seis horas(!) de uma entrevista recente com Wolfgang Smith. Caso tenha seis horinhas livres, pode conferi-la aqui.
Supondo, porém, que nem todos gozarão de tamanha ociosidade (em minha defesa: meu hábito – não sei se bom ou mau – consiste em escutar o Youtube enquanto faço outras coisas), trato de ir direto ao ponto que julgo mais importante. Por volta de segunda hora da entrevista, Smith começa a narrar suas experiências com sábios hindus com os quais convivera em sua juventude. E o principal: procura contrastar tais experiências àquelas dos santos cristãos.
Se, para Schuon e os perenialistas em geral – e o próprio Wolfgang Smith foi, por longo período de sua vida, um perenialista –, o ápice da vida religiosa, sua culminação esotérica, é fundamentalmente o mesmo em todas as religiões autênticas, o que Smith sugere, ao comparar a experiência de um iluminado àquela de um santo, é que são realidades diametralmente opostas.
Isso, porém, deve ser bem compreendido.
Na tradição do Vedanta, a culminação mística é, como devemos saber, chamada Nirvana. Etimologicamente, o termo Nirvana remete à ideia de algo que se apaga, que se extingue – como uma chama que, ao ser soprada, desaparece. Os sábios hindus com quem convivera em sua juventude – e Wolfgang Smith se refere a gente da estatura de um Ramana Maharshi – atingiram, portanto, este estado: o da extinção do próprio ego e um mergulho impessoal no Uno.
Aqui precisamos seguir com cuidado. Smith não trata desse estado sublime com desdém, com desrespeito ou com condenação. O tom, ao referir-se ao Nirvana dos iluminados hindus, é radicalmente diverso do meu próprio tom ao referir-me, noutro texto, às crianças sem rosto do livro de Arthur C. Clarke. Pois, de fato, são realidades muitíssimo diferentes: de um lado, iluminados que seguiram integralmente uma trilha tradicional; de outro, apropriações na linha new age de superficialidades e modismos orientais. Smith, ao referir-se aos sábios vedantinos, não tem dúvida de que se refere a pessoas realizadas, cuja experiência de estar no mundo e cujo estado de consciência nos são de todo incompreensíveis. É gente que sabe, experiencialmente, que Atman é Brahman – mas, afinal, o que isso significa, de verdade? Não sabemos, nem podemos saber.
A promessa cristã, por outro lado, é outra. Radicalmente outra. E não podemos buscar compreendê-la – este talvez seja o ponto central de toda a fala de Wolfgang Smith, e possivelmente a tese central de seu último livro – com base em premissas vedantinas, como costumam fazer aqueles que tentam colocar em diálogo o Cristianismo e a doutrina da não-dualidade do Vedanta. A promessa cristã, como tentei argumentar no referido texto sobre as crianças sem rosto, engloba o nosso rosto, a nossa personalidade. Não se trata de um mergulho impessoal no Uno; trata-se, sim, de uma união com Deus que, misteriosamente, não nos dissolve, mas nos eleva – até mesmo nosso corpo físico não é negado, mas elevado, redimido, glorificado.
Para Wolfgang Smith, trata-se, em suma, de dois caminhos. Não são caminhos diferentes para o mesmo ápice – como sugerem as leituras perenialistas, às quais por muito tempo ele próprio se filiou –, mas caminhos diferentes para ápices diferentes.
Três perguntas, claro, podem naturalmente surgir. A primeira: Por que há ápices diversos? A segunda: No grande plano de salvação, como estes ápices se encontram, se é que se encontram? A terceira: Na eternidade, qual a diferença qualitativa entre o estado de consciência de um santo cristão e o de um liberto vedantino?
A essas perguntas, porém, Smith não responde. Provavelmente, ouso arriscar, porque não faz a menor ideia. Eu, pelo menos, não faço.
De tudo o que escrevi, fica, ao final, esta sugestão: caso arrume seis horinhas, ouça a entrevista de Wolfgang Smith. Não há nada muito melhor do que isso no Youtube – isso sim posso afirmar, por experiência.