Parece ter entrado na moda falar sobre o “declínio do Ocidente”, o “suicídio do Ocidente” e afins.
O tema, porém, é muito, mas muito mais intrincado do que a imensa maioria das análises - menos ou mais superficiais - que vejo por todos os lados.
Cada um dos temas a seguir deve ser estudado individual e cuidadosamente.
Quero neste curto texto, contudo, deixar assinalados os momentos principais - ainda que certamente não os únicos - que levaram o Ocidente a cair tão profundamente. Trata-se aqui de um esquema e, portanto, de uma simplificação.
Partindo do mais recente (e, portanto, menos essencial e mais superficial) ao mais remoto (e, portanto, mais essencial e menos superficial), temos, a meu ver:
O tecno-humanismo ou o trans-humanismo: a coroação final do materialismo, pela fusão entre homem e máquina. A origem filosófica, como Henri de Lubac tão bem explora em seu Drama do Humanismo Ateu, pode ser traçada ao positivismo de Augusto Comte, esperançoso no advento de uma religião da humanidade que, pela ciência, suplantasse definitivamente as fases teológica e metafísica. Escrevi no ano retrasado, quando o ChatGPT era ainda uma novidade, este artigo - que segue me parecendo bastante atual. Ainda recomendo, sobre o tema, o didático texto desta semana d’O Navegador. Esta dimensão da queda do Ocidente é, sem dúvida, a mais dramática, e deverá tornar-se uma questão muito mais visível em um futuro próximo; de qualquer forma, nossa atual dependência tecnológica já é uma antevisão bastante potente - e em si já suficientemente trágica - do que está por vir. (Apenas aproveitando o tema: achei bastante significativo, do ponto de vista simbólico, que o filho de Elon Musk, X Æ A-Xii(!), tenha mandado Trump se calar, pois não é o presidente. De fato, Trump talvez seja, nesta tecno-mitologia invertida dos nossos tempos, uma figura joanina: um precursor que abre o caminho para o que ainda está por vir.)
O advento do comunismo, especialmente se considerarmos sua origem filosófica em Marx e Feuerbach1, destacando-se as manifestações igualitárias no cenário cultural contemporâneo - na Igreja Católica, temos, é evidente, a Teologia da Libertação, além de o Vaticano II apresentar alguns traços igualitários (ainda que, a meu ver, carregue em sua origem algumas intenções muitíssimo nobres e elevadas de “retorno às fontes”). Trata-se o advento do igualitarismo, porém, de uma realidade inevitável diante dos acontecimentos anteriores; além disso, os erros já se haviam somado de maneira tão acachapante que, em certos aspectos, o igualitarismo e a horizontalização plena visados pelos movimentos comunistas não deixam de ter um aspecto retificador. A enorme maioria dos ditos conservadores ou tradicionalistas contenta-se em criticar o comunismo, o igualitarismo e manifestações pontuais como a Teologia da Libertação ou o Vaticano II, não indo além deste ponto.
O niilismo, especialmente tal como exposto por Nietzsche, que - na leitura de Heidegger - significou uma luta não simplesmente contra a tradição cristã, mas contra toda uma tradição civilizacional ocidental que, desde os gregos clássicos, firmava-se na existência de um mundo superior, não reduzindo a existência meramente ao mundo terreno. “A afirmação ‘Deus está morto’ é a fórmula emblemática do niilismo e significa que o mundo metassensível (o mundo metafísico) dos ideais e dos valores supremos, concebido como ser em si, como causa e como fim – ou seja, como aquilo que dá sentido a todas as coisas materiais, em geral, e à vida dos homens, em particular –, perdeu toda consistência e toda importância” - como escreveu, sobre o tema, Giovanni Reale.2 Por outro lado, também não se pode simplesmente ignorar que Nietzsche teve grandes méritos em suas críticas vorazes contra um Cristianismo já em larga medida hipócrita e decadente.
O império do liberalismo - menos no sentido econômico, muito mais no sentido filosófico. Revolução Americana e Revolução Francesa se destacam como eventos históricos de inspiração liberal-iluminista, e os Estados Unidos e a França foram, de fato, dois dos principais expoentes liberais no cenário global por muito tempo - ainda que, pelo curso natural dos eventos, mais e mais se tenham distanciado do liberalismo em direção ao igualitarismo (este é, afinal, consequência e decorrência lógica daquele). Infelizmente, quase todos os ditos conservadores ou tradicionalistas que ousam ir além do combate ao comunismo paralisam suas análises por aqui.
A reforma protestante e a contra-reforma católica. A primeira, por romper com a tradição que ainda sobrevivia, ainda que já se tratasse de uma tradição de tal modo corrompida que o impulso reformador fosse bastante compreensível. A segunda, marcada pela ênfase no legalismo e na centralização, que tornaram as ainda maiores rupturas futuras inevitáveis (e o surgimento, à época, de figuras magníficas como São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila, apesar da rigidez institucional da contra-reforma, revela a força da graça divina em meio a um período de intensa centralização e controle - nenhum deles, bem se sabe, foi poupado pelos rígidos prelados da Igreja). A reforma e a contra-reforma podem ser encaradas como gêmeas siamesas, ambas contribuindo em sua própria medida para a queda do Ocidente.
O nominalismo de Guilherme de Ockham, contestando a existência objetiva dos universais e, portanto, conferindo ênfase muito maior à imanência do que à transcendência - e abrindo caminho, com sua separação radical entre fé e razão, para o cientificismo e o materialismo empírico que surgiriam posteriormente. Os poucos tradicionalistas ou conservadores mais sofisticados tendem a parar neste ponto em seus diagnósticos sobre o declínio do Ocidente.
Mais ou menos na mesma época, a rebelião dos poderes temporais contra a autoridade espiritual, personificada por Filipe, o Belo, e suas pressões - que incluíram a condenação à morte do Bispo de Troyes - sobre o Papa Clemente V no sentido de eliminar os Cavaleiros Templários. René Guénon atribui enorme importância a esse acontecimento, enxergando ali uma ruptura, no Ocidente, entre as dimensões esotérica e exotérica do Cristianismo - ruptura que aumentaria exponencialmente nos séculos seguintes, com a profusão, especialmente desde a Renascença, de ordens esotéricas e iniciáticas.
A escolástica, com suas sistematizações especialmente tendentes à racionalização e ao legalismo, aprofundando tais aspectos da teologia de Santo Anselmo (ver adiante) e conferindo tais contornos, de maneira sólida, ao Cristianismo ocidental (embora tal crítica deva ser dirigida menos ao próprio São Tomás de Aquino,3 e muito mais ao tomismo posterior ou à neoescolástica).
A Cruzada Albigense, em combate aos cátaros: em 1203, São Domingos pregava que apenas demonstrações reais de santidade podiam combater o movimento gnóstico dos cátaros. A Igreja, porém, optou por outro caminho, muito menos santo: investiu brutalmente contra os cátaros ou albigenses durante décadas, resultando em provavelmente - as estimativas variam bastante - algumas dezenas de milhares de assassinatos entre aproximadamente 1209 e 1244 (ano em que mais de duzentos foram massacrados na fortaleza de Montségur). Até hoje, tradicionalistas tendem a (absurdamente) minimizar, ironizar ou não encarar de frente as mazelas de episódios como este - cuja importância, porém, não poderia jamais ser negligenciada: foi mais um evento que, em vez de (como queria São Domingos) levar a Igreja ocidental a um autoexame profundo (os cátaros, afinal, traziam algo - no caso, o esoterismo ou o anseio por uma espiritualidade vivencial e direta - que a própria Igreja não parecia capaz de trazer, e era isso o que tornava o movimento tão forte e atraente), resultou em mais uma ruptura abissal entre a Igreja institucional-legalista e pessoas inclinadas à dimensão esotérica da religião.
A Reforma Gregoriana ou, como prefere Harold Berman, a Revolução Papal de Gregório VII, marcando uma centralização sem precedentes do poder de Roma, afirmando - em moldes legalistas e institucionais - a primazia da Igreja sobre o poder temporal e, mesmo que indiretamente, a primazia de Roma sobre toda a multiplicidade das Igrejas cristãs. No campo intelectual, destaca-se a figura de Santo Anselmo, que, a par da centralização institucional, inaugurava o método racional de abordagem dos mistérios da fé e fortalecia uma verdadeira juridicização teológica, a partir da ideia de satisfação vicária - em Cur Deus Homo -, preparando o terreno para o juridicismo dogmático posterior.
No mesmo sentido e aproximadamente na mesma época, o Grande Cisma, ruptura definitiva entre o Cristianismo Ocidental - que se tornaria crescentemente legalista, centralizador e reticente, para não dizer avesso, a manifestações místicas - e o Cristianismo Oriental, fortemente calcado na experiência hesicasta de contato direto entre homem e Deus, por meio de suas energias. Para piorar, menos de dois séculos depois veríamos o Massacre dos Latinos (ataques contra latinos em Constantinopla, por razões sobretudo econômicas e políticas) e, de outro lado, a Quarta Cruzada, inicialmente convocada pelo Papa Inocêncio III para a retomada de Jerusalém, mas desviada por interesses políticos e comerciais, culminando, em 1204, no Saque de Constantinopla: de tudo isso resultou não apenas dilapidação patrimonial, mas também mais algumas dezenas de milhares de mortes estimadas. A ruptura entre o Ocidente e o Oriente - e, portanto, entre a Igreja ocidental, crescentemente institucional-legalista, e toda uma tradição oriental apofática - alcançava um ponto de não-retorno.
Destaco, por fim, o próprio fato de o Cristianismo romano assentar-se especialmente em Santo Agostinho - que, de um lado, expunha sua aversão a seitas esotéricas como o maniqueísmo; e, de outro, enfatizava a doutrina do pecado original e da queda como realidade a ser superada por um processo que, no mundo católico ocidental, mais e mais assumiria contornos jurídico-legalistas (via Santo Anselmo, por exemplo). Este último ponto seria muito criticado pelas vertentes cristãs orientais, que até hoje, embora não abominem Agostinho como o fazem as correntes neognósticas ocidentais, tampouco o têm em alta conta, e nem de longe o colocam no mesmo patamar de Padres da Igreja como Gregório de Nissa, João Crisóstomo ou Máximo, o Confessor, por exemplo.4
Em ordem cronológica, temos: Santo Agostinho — Grande Cisma / Quarta Cruzada — Reforma Gregoriana / Santo Anselmo — Cruzada Albigense — Escolástica / Neoescolástica — Eliminação dos Templários / Filipe, o Belo — Nominalismo — Reforma / Contra-reforma — Liberalismo — Niilismo — Igualitarismo — Trans-humanismo.
O tradicionalista ou conservador apenas recua para algum momento anterior nessa longa queda, quase nunca, porém, indo além da crítica ao nominalismo. Ou seja: quando muito, percorre apenas metade do caminho.
A grandeza do Cristianismo está, entre outros pontos, no mistério da encarnação. Na encarnação, imanência e transcendência se unem de maneira absolutamente sublime e incompreensível. É um paradoxo supremo.
Mas vivemos no tempo. O Cristianismo histórico se desenvolveu no curso dos tempos. E, no curso dos tempos, verdades paradoxais fragmentam-se.
Como já ouvi de um importante sacerdote católico contemporâneo, o Ocidente cristão enfatizou demasiadamente - e cada um dos eventos acima relatados5 é um exemplo disso, de uma forma ou de outra - a imanência, em detrimento da transcendência.
E é isso o que, a meu ver, fez nascerem, no curso dos séculos, tantos movimentos iniciáticos sombrios - no sentido junguiano do termo - que, fora dos muros protetivos da Igreja (onde poderia haver integridade), buscaram, à sua maneira (algumas vezes, uma maneira terrível;6 outras vezes, uma maneira bastante legítima, embora incompleta), reviver fragmentos do esoterismo perdido.
Como encontrar adjetivos para qualificar tamanha tragédia?
Que, ao menos, possamos começar a compreender o curso dos eventos que nos trouxeram até aqui. Do contrário, seguirá sendo impossível buscar qualquer solução ou saída.
Sobre Feuerbach, poucos estudos são mais esclarecedores do que aquele empreendido por - novamente - Henri de Lubac no clássico O Drama do Humanismo Ateu.
REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 26. Ainda no mesmo sentido, cf. novamente a obra O Drama do Humanismo Ateu, de Henri de Lubac - que trata, no livro, da tríade Feuerbach - Comte - Nietzsche, além de, no polo positivo de toda essa história, Dostoievski.
Não nos esqueçamos de que foi o próprio São Tomás que, diante de sua obra vastíssima, disse que era tudo palha.
Sobre as diferenças profundas entre Santo Agostinho e São Máximo, temos em português: PELIKAN, Jaroslav. A Tradição Cristã: o Espírito do Cristianismo Oriental: 600-1700. Vol. II. São Paulo: Shedd, 2015, pp. 200-202; 312-314.
Ou, em alguns casos, as consequências do evento, mais do que o evento em si: os “eventos” Santo Agostinho ou São Tomás são riquíssimos; suas consequências, nem sempre.
Muitas acabam por desaguar na magia teúrgica e afins.
Uma honra ser mencionado no seu artigo, caro Bruno! De fato, jamais se poderia atribuir o declínio ocidental a um só fator, os motivos são muitos, como você bem os elencou, em número de 12 - não coincidentemente um número muito simbólico. Gosto muito das duas obras que mencionou, "O drama do humanismo ateu" e "O saber dos antigos", inclusive dois dos autores que citei no meu último artigo descobri através deste último. Como não poderia deixar de ser, a causa do declínio não é econômica ou política, e sim espiritual, todo o resto decorrendo disso. Identifico esse mesmo problema da perda do contato com o transcendente, este sim o que faz a fé diferente de qualquer sistema humano. Estou procurando um livro que explique as diferenças principais entre o cristianismo ocidental e oriental, esse que você referiu "A Tradição Cristã: o Espírito do Cristianismo Oriental" pode ser uma boa introdução?