O Sentido Espiritual da Modernidade #2
Parte 2: O Valor do Mundo Moderno (a partir de Guénon)
Este texto é a segunda parte de uma série. A primeira pode ser lida aqui.
Confrontar o mundo moderno não é tarefa fácil.
Em muitos textos, tenho sugerido que, se buscamos uma abordagem íntegra diante dos dilemas da existência, a modernidade deve ser de alguma forma contemplada. Assim, por exemplo, o progressismo de um Ken Wilber poderia ser analisado lado a lado com o tradicionalismo de um René Guénon:
René Guénon X Ken Wilber
Como já deve estar claro por quase todos os textos aqui publicados, um dos focos centrais desta página é a busca por integridade. A ideia de Metaxy aponta precisamente a isso: a um meio-caminho entre o alto e o baixo, a transcendência e a imanência, o céu e a terra. O
A equação, porém, está longe de ser simples.
Não se trata de uma mera justaposição de épocas distintas, cada qual com seu valor intrínseco. No meu texto sobre Ken Wilber e René Guénon, um ponto passou sem o destaque devido: enquanto Wilber não valoriza os tempos antigos por desconhecimento puro e simples, René Guénon demoniza o mundo moderno a partir de um diagnóstico muitíssimo preciso, em suas linhas gerais. Wilber peca pelo conteúdo: despreza o passado por não saber exatamente do que fala e, assim, contentar-se com uma caricatura. Já Guénon é cirúrgico em sua leitura sobre as mazelas humanas, e seu problema central é de tom: não há, em sua obra, muito espaço para a esperança redentora, e o que fica é quase um convite pela espera quase-passiva do fim inevitável de um mundo em ruínas.
Wilber, por ignorância ou superficialidade, trata tradições milenares como expressões inferiores da consciência humana: constrói sua hierarquia evolutiva sobre caricaturas. Seu “nível mítico” está longe de fazer jus à densidade simbólica, ontológica e espiritual das grandes tradições. Seu modelo se pretende inclusivo, mas inclui apenas o que foi esvaziado de seu conteúdo profundo. O diagnóstico de Guénon, pelo contrário, é preciso, denso, informado. Mas, ao demonizar o mundo atual, convida-nos - se não era sua intenção original, foi o que, em muitos casos, acabou acontecendo (pode-se argumentar que por incompreensão de sua obra, o que não deixa de ter sua parcela de verdade) - à paralisia, à fuga, ao elitismo, ao ressentimento e, no limite, à brutalidade.
Como dar passos adiante?
O diagnóstico guénoniano sobre a miséria da modernidade é correto em um ponto fundamental: em nenhuma outra época conhecida esteve a humanidade tão dissociada de qualquer centro irradiador de sentido. Charles Taylor é, provavelmente, a mais eloquente voz acadêmica a denunciar o fato inegável de que jamais houve época registrada em que a humanidade tenha, de maneira tão escancarada, feito de si mesma o próprio centro; ou, em termos mais diretos, o secularismo é, sob todos os ângulos, uma realidade absolutamente marginal na história conhecida - um desvio, uma realidade sem paralelo, que não se explica por condições perenes do ser humano, mas apenas por contingências muitos específicas destes nossos tempos.
Vemo-nos, então, neste cenário: uma humanidade crescentemente materialista; a religião tratada como assunto eminentemente privado; o esvaziamento quase completo das tradições milenares, corroídas desde dentro e apresentando-se como sombras opacas do que um dia foram; hordas humanas que caminham sem ter em vista um sentido profundo para além da própria gratificação pessoal ou, se muito, do bem-estar de seus mais próximos; e, em resposta, a profusão de uma multiplicidade alucinante de novas superstições e crenças sem qualquer vínculo com as tradições verdadeiras, às quais também muita gente - sedenta por escapar ao materialismo disseminado - facilmente acorre. Tudo isso, aliás, diagnosticado por Guénon com uma potência talvez inigualável.
A modernidade não pode ser encarada, portanto, como uma época como outra qualquer - que, com um peso similar, deve ser integrada pelo ser humano. E isso por uma razão que deve estar clara: trata-se de uma época que, desligada em enorme medida de centros irradiadores de verdadeiro sentido, manifesta em si elementos opostos à tradição. O que sempre se tomou por bom agora é tomado por mau; os vícios combatidos por séculos e séculos passam a ser não apenas admitidos e incentivados, mas também, nada raramente, louvados; os caminhos autênticos se perdem mais e mais num universo de infinitas opções, e as religiões apresentam-se, com imensa frequência, como produtos à venda no grande mercado da modernidade. Some-se a tudo isso, em tempos mais recentes, a profusão inebriante - no pior sentido do termo - de tecnologias que nos alienam da experiência de estarmos vivos, transportando-nos para mundos paralelos, digitais, por horas e horas de cada dia: um mergulho na quantidade - no caso, dos algoritmos - que nos obriga a redobrar a atenção que devemos dar àquele pensador francês cujos alertas sobre o reino da quantidade se mostram, hoje, mais proféticos do que nunca.
Guénon, tendo por base doutrinas orientais, dizia que vivemos na Kali Yuga - o último estágio do atual ciclo cósmico, e já em suas fases mais avançadas e, portanto, mais distantes do espírito e mais mergulhadas na matéria.
“A civilização moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia”, escrevia com seu costumeiro tom incisivo. E prosseguia:
De todas que conhecemos, é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e também a única que não se apoia em qualquer princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material, que vem já de vários séculos, e que se vai acelerando cada vez mais, tem sido acompanhado de uma regressão intelectual totalmente incapaz de ser compensada. Trata-se, aqui, bem entendido, da verdadeira e pura intelectualidade, que se poderia também denominar espiritualidade, qualificação esta que nos recusamos atribuir àquilo que os modernos têm-se aplicado de um modo particular: o cultivo das ciências experimentais, em vista das aplicações práticas que delas podem decorrer. Um único exemplo permitiria medir a extensão dessa regressão: a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino era, em seu tempo, um manual para uso dos estudantes; onde estão hoje os estudantes capazes de aprofundá-lo e assimilá-lo?
O diagnóstico assume, em Guénon, um tom apocalíptico: não se trata de mera materialização; ao final, se revelará algo muito mais sombrio. O curso do mundo contemporâneo, escrevia na década de 1940, “depois de ter trabalhado constantemente na sombra para inspirar e dirigir invisivelmente todos os ‘movimentos’ modernos, chegará finalmente a ‘exteriorizar’, se nos podemos exprimir assim, qualquer coisa como a contrapartida de uma verdadeira tradição, pelo menos tão completa e tão exatamente quanto o permitem os limites que se impõem necessariamente a toda falsificação”. Trata-se de imitação que se dará como uma “sombra invertida”, e será
a maior e mais extrema de todas as paródias, de que só vimos até agora, através de toda falsificação do mundo moderno, ‘experiências’ parciais e ‘prefigurações’ muito pálidas, em comparação com aquilo que se prepara num futuro que alguns veem próximo e que a rapidez cada vez maior dos acontecimentos tende a dar razão.
Guénon prossegue, afirmando que as trevas que se avizinham se forjarão pela utilização “de elementos autenticamente tradicionais na sua origem, mas desviados do seu verdadeiro sentido e postos ao serviço do erro”, tudo para suscitar um estado geral de confusão, culminando em um “reino” que
não será mais do que a ‘grande paródia’ por excelência, a imitação caricatural e ‘satânica’ de tudo o que é verdadeiramente tradicional e espiritual... Sob o pretexto de uma falsa ‘restauração espiritual’, haverá uma espécie de reintrodução da qualidade em todas as coisas, mas de uma qualidade tomada ao invés do seu valor legítimo e normal; depois do ‘igualitarismo’ dos nossos dias, virá de novo uma hierarquia afirmada visivelmente, mas uma hierarquia invertida, ou, mais propriamente, uma ‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que tocar mais perto no fundo dos ‘abismos infernais’.
Nesse contexto, o que haverá de acontecer (e em linhas similares, conforme veremos adiante, também diz o mesmo, em essência, o Catecismo católico) é a queda final no materialismo até o ponto da dissolução absoluta, resultando daí, porém, a divina intervenção, não porque a ordem é gerada pelo caos, mas porque, quando se chega ao fim, nada resta senão um novo começo. Nas palavras de Guénon:
Quanto ao fim deste ciclo, ele supõe a ‘recuperação’ que permitirá que essas tendências ‘maléficas’ sejam ‘transmutadas’ para um resultado definitivamente ‘benéfico’... Aliás, todas as profecias (é claro que tomamos aqui esta palavra no seu sentido verdadeiro) indicam que o triunfo aparente da ‘contra-tradição’ só será passageiro, e que é no momento exato em que ele parece mais completo que será destruído pela ação de influências espirituais que intervêm então para preparar imediatamente a ‘recuperação’ final; bastará, com efeito, uma simples intervenção direta para por fim, no momento exato, à mais terrível e à mais verdadeiramente ‘satânica’ de todas as possibilidades incluídas na manifestação.
Mas, como já adiantei, não precisamos concordar com Guénon e sua concepção cíclica de tempo para chegar a conclusão similar: também o Cristianismo, cuja concepção temporal é eminentemente linear, concorda que caminhamos de forma involutiva, fato simbolizado pela própria trajetória de Cristo em sua via crucis. Ao menos, é o que podemos concluir destes pontos do Catecismo católico mais recente, especialmente nos parágrafos 675, 676 e 677:
§675. Antes da vinda de Cristo, a Igreja deverá passar por uma prova final, que abalará a fé de numerosos crentes. A perseguição, que acompanha a sua peregrinação na Terra, porá a descoberto o ‘mistério da iniquidade’, sob a forma duma impostura religiosa, que trará aos homens uma solução aparente para os seus problemas, à custa da apostasia da verdade. A suprema impostura religiosa é a do Anticristo, isto é, dum pseudo-messianismo em que o homem se glorifica a si mesmo, substituindo-se a Deus e ao Messias Encarnado.
§676. Esta impostura anticrística já se esboça no mundo, sempre que se pretende realizar na história a esperança messiânica, que não pode consumar-se senão para além dela, através do juízo escatológico. A Igreja rejeitou esta falsificação do Reino futuro, mesmo na sua forma mitigada, sob o nome de milenarismo, e principalmente sob a forma política dum messianismo secularizado, ‘intrinsecamente perverso’.
§677. A Igreja não entrará na glória do Reino senão através dessa última Páscoa, em que seguirá o Senhor na sua morte e ressurreição. O Reino não se consumará, pois, por um triunfo histórico da Igreja, segundo um progresso ascendente, mas por uma vitória de Deus sobre o último desencadear do mal.
Como Guénon, também a Igreja, em seu Catecismo, expressa a crença num mergulho decisivo do mundo no mais potente e “último desencadear do mal”. E, embora haja também aqui a promessa de redenção - prefigurada simbólica e historicamente pela ressurreição de Cristo -, o diagnóstico em relação ao nosso atual mundo é, em ambos os casos, aterrador.
O que pode, então, haver de bom no nosso mundo moderno?
Acredito que a resposta passe fundamentalmente por dois pontos: 1) a tomada de consciência do que ocorre; e 2) a redescoberta de verdades esquecidas. Vejamos a seguir.
A tomada de consciência
G. K. Chesterton, em uma de suas passagens mais famosas, escreveu: “Quando um sistema religioso é estilhaçado..., não são apenas os vícios que são liberados. Os vícios são, de fato, liberados, e eles circulam e causam dano. Mas as virtudes também são liberadas; e as virtudes circulam muito mais loucamente, e elas causam um dano mais terrível. O mundo moderno está cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque foram isoladas uma da outra e estão circulando sozinhas”.
Chesterton está certo: a integridade e a sinfonia – como diria Von Balthasar – cristãs foram estilhaçadas em algum momento. O todo harmônico de virtudes (verdade, piedade, fé, esperança, amor, misericórdia, confiança, personalidade, autorrenúncia, silêncio, beleza, paixão, louvor à imanência, louvor transcendência etc.) foi estilhaçado e, assim, as virtudes circulam por aí sozinhas, causando dano terrível. Sua análise omite, porém, uma constatação que não escapa à apreensão da Psicologia, certeira neste ponto: a fragmentação, indesejável na medida em que rompe a felicidade inerente à integridade, traz, por outro lado, uma vantagem também inegável, consistente na possibilidade de lançarmos luzes sobre os fragmentos e compreendê-los individualmente.
Como C. G. Jung percebeu, a tomada de consciência pressupõe a diferenciação. Se apenas houvesse o branco, jamais teríamos consciência das diversas cores que o compõem. “A função psicológica de conhecer ou ver requer, em primeiro lugar, que a experiência indiferenciada e difusa seja cindida num sujeito e num objeto, o conhecedor e o conhecido”, escreveu Edward Edinger, seguidor de Jung, em seu livro intitulado justamente A Criação da Consciência. “Essa divisão primordial da unicidade original corresponde à descrição de Erich Neumann sobre a separação entre os pais do mundo. A separação entre o Pai Céu e a Mãe Terra, ou entre a luz e a escuridão, e o evento cosmogônico original que assinala o nascimento da consciência enquanto capacidade de conhecer. Como diz Neumann: ‘Esse ato de cognição, de discriminação consciente, divide o mundo em opostos, pois a experiência do mundo só ó possível através dos opostos’. O ego separa-se do pleroma, o sujeito do conhecimento separa-se do objeto do conhecimento, e assim se torna possível o ato de conhecer”. Só conhecemos profundamente cada objeto na medida em que este objeto pode ser destacado, individualizado.
O mundo das fragmentações traz imensos atritos e sofrimentos, mas traz também – o que é inegável – possibilidades inteiramente novas de compreensão de cada elemento que constitui o todo. Jacques Maritain, nesse mesmo espírito, contrapôs a experiência da humanidade medieval à dos nossos tempos: enquanto, naqueles séculos, a humanidade vivia muito mais plenamente as verdades divinas (“tudo isso era vivido, muito mais do que consciente, mais do que objeto de conhecimento reflexo”), o homem contemporâneo tem uma consciência muito maior de si mesmo e do mundo, embora tenha, proporcionalmente, perdido a capacidade de viver a harmonia desejada por Deus. “A dissolução radiante da Idade Média e de suas formas sacrais é a germinação de uma civilização profana”, prossegue Maritain – que constrói seu texto ao ritmo desse pêndulo oscilante, que vai-e-volta da santa vida irrefletida para a profana tomada de consciência, pêndulo este que, na vertente oriental do Cristianismo, é reelaborada por Berdiaev.
O grande desafio de nossos tempos - ou a grande oportunidade - passa a ser buscar os fragmentos da inteireza perdida, fragmentos estes espalhados por todos os cantos do mundo, louvando-os com o olhar da consciência. Como escrevi no meu texto anterior sobre este sentido espiritual da modernidade:
Para o Cristianismo… é justamente na materialização e no mergulho na quantidade que reside, secretamente, a realização espiritual, ou qualitativa, última. Toda a fragmentação do mundo moderno, por mais trágica que seja - e efetivamente o é, porque o que vemos por todo lado é uma quantidade de fato dissociada da qualidade, o que tenebroso -, traz, por outro lado, um convite missionário ao cristão: nenhuma fragmentação, nenhum mergulho no materialismo, nenhum império excessivo da quantidade deve ser evitado, e sim redimido, como tão claramente simboliza a crucificação de Cristo
A materialização é, para Guénon, sinônimo de fragmentação. Claro que há nisso um caráter diabólico, em termos etimológicos: dia-bolos é o que separa, fragmenta. Mas a matéria não é diabólica, no sentido de que não é essencialmente má. Para o Cristianismo, como mencionei anteriormente, a quantidade deve ser redimida pela qualidade. E isso significa, concretamente, que o desafio do cristão é, reconhecendo as mazelas terríveis da modernidade (reforço que o diagnóstico de Guénon é fundamentalmente correto), mantendo acesa a chama da qualidade suprema - a luz de Cristo - em seu coração, buscar os fragmentos da integridade perdida, recompondo novamente um todo coeso.
Neste espírito, o desafio, e o sentido espiritual da modernidade, consiste na muito trabalhosa, mas ao mesmo infinitamente gratificante missão de penetrar cada canto do mundo, compreender seus símbolos, abraçar seus modos de ser – não para recuar um milímetro nas próprias convicções irrenunciáveis, mas apenas para, à semelhança da Virgem de Guadalupe, fazer de símbolos estranhos e sons dissonantes uma misteriosíssima nova dança, integralmente cristã.
Num mundo de fragmentações, pode-se, claro, cair em definitivo na inconsciência. Um sonho - puramente inconsciente por sua natureza - é uma sucessão desorganizada de fragmentos, e nenhuma tomada de consciência pode daí surgir. Mas, por outro lado, a fragmentação pode ser, a quem se dispuser verdadeiramente neste sentido (pois mais rara que tal disposição possa ser), uma enorme oportunidade dada a esta geração.
A redescoberta de verdades esquecidas
Com a fragmentação e a velocidade estonteantes do mundo moderno, surge uma imprevista oportunidade.
Vendavais assolam o mundo, Construções sólidas são feitas em pedaços. Mas fragmentos voam com os ventos. E, de repente, tesouros antes inacessíveis caem em nosso colo.
Pensemos num dos assuntos de que mais tenho tratado em meus textos: o hesicasmo. Qual seria a chance de que eu, caso vivesse há duzentos anos, tivesse sequer a informação de que há, no seio do Cristianismo, uma tradição hesicasta que remonta aos Padres da Igreja? Como poderia chegar a mim um exemplar da Filocalia? De que modo os textos de milenar sabedoria oriental - agora não falo somente de escritos cristãos, mas também das tradições védicas e extremo-orientais - poderiam me alcançar, destacando poeticamente a beleza inestimável do silêncio profundo?
Mesmo Guénon, crítico ferrenho da modernidade: de onde viriam seus conhecimentos metafísicos védicos e taoistas, por exemplo, se não vivesse na França do século XX, e sim na mesma França pré-iluminista? Sim - pode-se argumentar -, não teria as benesses da modernidade, mas delas não precisaria, porque também não viveria suas mazelas fundamentais. É, porém, uma objeção apenas parcialmente verdadeira. Primeiro, porque acredito, com bastante sinceridade, que o Cristianismo pré-iluminista, como já disse muitas vezes antes, apresentava traços suficientemente problemáticos. E segundo: a objeção em si admite que há, sim, benesses na modernidade. Há, muito mais do que em outras épocas, acesso a informações valiosíssimas - e o que cabe, por mais desafiadora, novamente, que seja a missão, é, quase arqueologicamente, redescobrir as preciosidades perdidas, recompondo, assim, a imagem íntegra e fidedigna do que o Cristianismo essencialmente é.
Na modernidade, temos muito mais pistas e informações para isso do que nossos antepassados do século XVI podiam sonhar.
Claro: o otimismo em relação ao acesso informacional da modernidade não pode ser absoluto ou ingênuo. Temos acesso à Filocalia e aos textos védicos, mas numa cultura que transformou a informação em commodity e o conhecimento em entretenimento - quando não em alimento da própria vaidade. E, como dito, se a fragmentação pode, a quem assim se dispuser, levar a uma maior tomada de consciência, é também plenamente possível, e até mesmo muito mais provável em nossos tempos, que o sujeito simplesmente se perca em meio aos fragmentos, perdendo também, assim, o pouco de consciência que ainda lhe pudesse restar.
Tudo isso, porém, pode ser objeto de problematização futura. Aqui, fica apenas a anotação, como provocação.
De forma geral, lembro que o próprio Guénon, em meio a suas críticas extraordinárias à modernidade, não deixa de admitir que ela tem, também, seu valor: por decorrência lógica da ideia de um ciclo cósmico, movido por foças infinitamente superiores às humanas, há uma qualificação própria a estes tempos, que quase determinam - embora não determinem a ninguém, em particular, como agir: pois, se o escândalo deve necessariamente vir, ai daquele por quem o escândalo vier (no misteriosíssimo texto de Mateus 8: 17: “porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem”) -, há, eu dizia, uma qualificação própria a estes tempos, cujos traços, portanto, não deixam de ser inexoráveis e ter seu lugar no grande quadro.
É nesta linha, afinal, que Guénon encerra seu Reino da Quantidade, já no último parágrafo da obra:
Somos levados a considerar o duplo aspecto ‘benéfico’ e ‘maléfico’ sob o qual se apresenta a própria marcha do mundo enquanto manifestação cíclica, e que é a verdadeira ‘chave’ de toda a explicação tradicional das condições segundo as quais essa manifestação se desenvolve, sobretudo quando a consideramos - como fizemos aqui - no período que conduz diretamente a seu fim. Por um lado, se considerarmos simplesmente essa manifestação em si mesma, sem relacioná-la a um conjunto mais amplo, sua marcha inteira, do começo ao fim, será evidentemente uma ‘descida’ ou uma ‘degradação’ progressiva, e é isso que podemos denominar seu sentido ‘maléfico’; por outro lado, essa mesma manifestação, situada dentro do conjunto do qual faz parte, produz resultados que têm um valor realmente ‘positivo’ na existência universal, e é preciso que seu desenvolvimento seja levado até o fim, compreendendo inclusive as possibilidades inferiores da ‘idade sombria’, para que a ‘integração’ desses resultados seja possível e se torna o princípio imediato de outro ciclo de manifestação, e é isso que constitui seu sentido ‘benéfico’… [É] sempre, em suma, o ponto de vista parcial que é ‘maléfico’, e o ponto de vista total, ou relativamente total em comparação com o primeiro, que é ‘benéfico’, pois todas as desordens possíveis só o são na medida em que são consideradas em si mesmas e ‘separativamente’, e essas desordens parciais desaparecem por completo diante da ordem total na qual acabam por se reintegrar e da qual, despojadas de seu elemento ‘negativo, são elementos constitutivos como qualquer outra coisa.
Uma nota final.
Sobre essa redescoberta a integridade que hoje nos é possível, já escrevi o texto seguinte:
A Igreja e a Integridade Perdida
Há uma ideia bastante conhecida segundo a qual as grandes religiões têm um componente exotérico, ou exterior, e um componente esotérico, ou interior-místico (aliás, pessoalmente prefiro o termo místico a esotérico, razão pela qual daqui em diante utilizarei mais aquele do que este). Isso aparece muito claramente entre os ‘perenialistas’, mas não só. O e…
Muito bom, Bruno! Há quem diga que sempre foi assim, que em todas as eras as pessoas pensavam estar numa época de decadência, em comparação a um passado idealizado. Mas é inegável que a modernidade tem um item até então inédito, qual seja, o abandono do transcendente como norma, o materialismo como pressuposto filosófico. Tendo a concordar com o catecismo nesse ponto, a ver uma degradação cada vez maior que só poderá ser redimida por uma ação divina. Você acerta quando faz a ressalva da fragmentação como meio para um maior esclarecimento, Graças a Deus podemos hoje ter contato com práticas e tradições que nos podem ser muito úteis, ainda que infelizmente hoje as pessoas tratem mesmo o sagrado como se estivessem num mercado escolhendo produtos. No reino da quantidade, até a religião se torna um adorno, uma escolha mais estética do que espiritual.
Muito obrigado! Vejo em mim um impulso bastante forte de tentar alguma "solução diplomática" com a modernidade. Meu texto sobre o Wilber ia nessa direção. Mas, pensando com maior atenção, as coisas não são simples. Como você disse, há um traço de especial afastamento em relação ao espírito, maior do que em qualquer época de que temos notícias. O esfacelamento das tradições é uma tragédia grande demais, e a transformação das religiões em "mercadoria" parece exigir uma resposta similar àquela de Jesus diante dos vendilhões do templo. Nesse aspecto, não há espaço para acomodações, ainda que haja, como defendi, pontos benéficos em nossos tempos. O assunto é obviamente complexo. Um abraço!