O problema da Gnose e do Gnosticismo
Tentando desfazer alguns nós de profunda incompreensão
Gnose e Gnosticismo
O imenso interesse recente sobre a Gnose e o Gnosticismo é fenômeno que me parece ligado umbilicalmente ao renascimento do catolicismo conservador no Brasil. Tem sido, porém, um interesse atabalhoado, cheio de confusões bastante sérias.
O tema me interessa genuinamente há ao menos 15 anos. Conheci e li textos de grupos modernos declaradamente gnósticos e testemunhei suas virtudes e defeitos Mais tarde, li com enorme curiosidade tudo o que se relacionasse ao tema, a partir de outras perspectivas: foi neste passo que tive contato com a obra de Eric Voegelin e, no Brasil, a de Orlando Fedeli, por exemplo - dos quais tratarei adiante.
Enfim: tenho, há quase duas décadas, analisado o tema sob pontos de vista muito diversos, às vezes opostos. Isso me coloca em uma posição privilegiada para tentar escrever sobre a Gnose e, talvez, desbaratar alguns nós que tanta confusão têm causado.
Procurarei apresentar uma abordagem relativamente curta e clara, mas admito que muitos serão os autores citados e os temas têm boa complexidade. Talvez novos desenvolvimentos sejam necessários futuramente - na realidade, uma exploração detalhada exigiria um livro inteiro. Espero, de qualquer forma, que este texto possa servir de introdução e desde já esclarecer pontos importantes que têm sido tão mal compreendidos.
— Gravura de Flammarion, publicada pela primeira vez em 1888 no livro de Camille Flammarion, L'Atmosphère: Météorologie Populaire. —
O Mito Gnóstico
Iniciemos pelo básico: o mito gnóstico.
Em essência, creem os gnósticos (embora eu faça aqui uma generalização, pois há muitas nuances e há grupos gnósticos que não creem no mitos nesses termos) que o mundo em que vivemos foi criado por um demiurgo odioso - muitas vezes retratado como o Deus do Antigo Testamento. Vivemos, assim, em um mundo-prisão. Felizmente, temos em nosso coração uma centelha divina, e por ela podemos retornar ao nosso lar verdadeiro: cada pessoa carrega dentro de si uma pequena parte da divindade original, embora presa no mundo imperfeito criado pelo demiurgo.
Os gnósticos ensinavam que o objetivo da vida é despertar essa centelha divina interior. Tal despertar, conhecido como Gnose, é um tipo de conhecimento espiritual profundo que liberta a alma das ilusões e do sofrimento do mundo material. Por meio da Gnose, a alma pode transcender o domínio do mundo-prisão demiúrgico e retornar à verdadeira plenitude.
Claro que a mitologia gnóstica tem uma série infindável de detalhes que não nos interessam aqui; além disso, a maioria das fontes originais dos movimentos gnósticos foi perdida, razão pela qual construímos historicamente uma visão limitada - e enviesada - do fenômeno. Para nossos propósitos, o que realmente importa é compreender essa ideia de que, para grupos que hoje rotulamos como gnósticos – embora este termo só viesse a ser empregado muito depois dos maniqueus, por exemplo –, o mundo material é, de forma geral, mau e opressivo. A nós, humanos, resta buscar a libertação por meio de um conhecimento secreto, reservado a poucos (o demiurgo, afinal, não quer que nos libertemos). Assim, fugiremos para além do mundo material.
Uma observação: isso não significa, como alguns imaginam, que os gnósticos necessariamente defendessem, por exemplo, a não-procriação. Certamente, sempre houve gnósticos celibatários. Mas, por outro lado, comumente eram também reencarnacionistas. A única maneira de escapar ao mundo, para os gnósticos, é a partir de uma vida no mundo: cada nascimento não deixa de ser uma oportunidade. Aos que fracassam, a demiúrgica roda da vida e da morte continuará a girar. O objetivo – que nos faz lembrar algumas filosofias orientais – é a libertação dessa roda brutal. Não tenho dúvida de que é uma forma de pensar muito pouco íntegro: afinal, diante da tão complicada dicotomia entre espírito e matéria, que o Cristianismo procura resolver mediante a abertura ao paradoxo, o Gnosticismo simploriamente opta pelo caminho de rejeitar o mundo material. E o diabolos é, etimologicamente, justamente aquele que separa, divide.
E outra observação importante: apesar da parcialidade e da falta de integridade do Gnosticismo, creio sinceramente que alguns movimentos gnósticos tornaram-se possuidores de parcelas de verdades profundas que, infelizmente, encontrando pouco abrigo na rigidez institucional da Igreja ocidental, acabaram por reaparecer em contextos bastante problemáticos.
Orlando Fedeli e Eric Voegelin
Voltemos.
Renascendo no Brasil o conservadorismo católico, diagnosticava-se que o inimigo histórico da Igreja foi o Gnosticismo, em suas infindáveis vertentes.
Tal diagnóstico levou à rápida associação de movimentos ideológicos e heresias modernas a traços gnósticos. Foram, porém, abordagens muitas vezes simplificadas, tendentes a ignorar nuances de primeira importância, resultando em uma compreensão atabalhoada e reducionista do fenômeno gnóstico. A simplificação também serviu como ferramenta retórica para reforçar a identidade conservadora e combater o que se percebia como ameaça externa ao Cristianismo. A Gnose tornava-se o mal a ser combatido - mas as coisas, como tentarei demonstrar, são um tanto mais complexas.
Nesse movimento, destaco a relativa popularização, no Brasil, das obras de Eric Voegelin - que aponta o Gnosticismo como a força-motriz oculta de ideologias revolucionárias - e de Orlando Fedeli e seus seguidores (alguns dos quais vêm alcançando boa popularidade nas mídias digitais), conhecidos pela acusação de verem “gnose em tudo”. Ambos os autores têm inegáveis méritos, ao mesmo tempo em que, a meu ver, contribuíram, cada um a seu modo, para a incompreensão do fenômeno gnóstico nestes tempos recentes.
Vejamos cada um dos casos.
3.1. O combatente Orlando Fedeli
Orlando Fedeli foi um ferrenho opositor da Gnose, em todas as suas manifestações.
Consegue desenvolver o tema de maneira mais apropriada em seu livro Antropoteísmo. Na realidade, o livro foi inicialmente lançado em 2010, ano da morte de Fedeli, a partir de folhas datilografadas nos anos 1980, pendentes de sérias revisões - empreendidas a posteriori por seus alunos. Isso vale, claro, como curiosidade histórica. Mais importante é o conteúdo da obra, em que Fedeli diagnostica duas manifestações do Antropoteísmo (ou “religião do homem”): (i) a Gnose propriamente dita, que se subdivide em “gnosticismo místico especulativo” (ligado à intuição intelectual) e “gnosticismo místico volitivo” (ligado à vontade); e (ii) o Panteísmo materialista e naturalista, que por sua vez se subdivide em “panteísmo racionalista” e “panteísmo materialista crasso”.
Fedeli - deve-se reconhecer - tem méritos grandes nessa subdivisão. Sua percepção é sensivelmente mais acurada do que a de Voegelin (de quem falarei adiante), que precisa se contorcer para demonstrar que ideologias materialistas, como o Comunismo, têm fundo Gnóstico, sendo o Gnosticismo essencialmente avesso à matéria (vide o mito acima) - tanto que o próprio Fedeli tecia críticas a este aspecto da obra voegeliniana.
Um detalhamento do pensamento de Fedeli não caberia neste espaço, mas é importante notar que a Gnose e o Panteísmo são, a seu ver, dois aspectos da Religião do Homem ou Antropoteísmo. “Em ambos os ramos da Religião do Homem”, escreveu, “se nota a mesma atitude contra a metafísica real e objetiva”.1 O Panteísmo seria, por assim dizer, uma Gnose grosseira, materialista, relativista, buscando em última análise o prazer dos sentidos; a Gnose propriamente dita, por sua vez, seria antimaterialista, embora igualmente relativista: para ela, em última análise, moralidades terrenas têm valor apenas relativo (podem garantir uma vida mais harmônica e um post mortem mais agradável, mas não a libertação verdadeira), já que tudo aqui embaixo é prisão - cabe a nós, ao fim, buscar a libertação não apenas do mundo material, mas da própria cadeia de vidas e mortes.
Em Fedeli, portanto, há a transposição de uma ideia cósmica de opressão - própria à Gnose - para uma ideia materialista de opressão - como no Panteísmo. Tal transposição se deu, por exemplo, em Feuerbach, ponte entre uma Gnose idealista (Hegel) e um Panteísmo materialista ávido por concretizar a beatitude transcendente no plano terreno (Marx) - a “imanentização do eschaton” também encontrada em Voegelin, que se complica, porém, ao não distinguir a Gnose do Panteísmo.
Mas nem tudo é meritório na obra de Fedeli. Especialmente quando se dá a analisar seu tema favorito - justamente a Gnose.
Como tantos críticos da Gnose, Fedeli atenta-se a um ponto em especial: sua aparente negação do valor da razão humana. Ao menos, é disso que se trata a Gnose em sua mais elevada manifestação: a razão humana é tomada como insuficiente, porque atrelada ao mundo material e aos ciclos de vida e morte, e ao ser humano apenas deve caber entregar-se a seu Intelecto, sua Centelha Divina, sua Intuição Intelectual etc. (os termos variam, mas todos se relacionam a uma mesma ideia de que o ser humano carrega em si uma capacidade de intelecção imediata, cardíaca, de verdades superiores).
Fedeli foi um exímio estudioso da Gnose e pôde compreendê-la muito bem. Diferentemente de muitos que utilizam o termo sem entender ao certo de que falam, ele sabia do que estava tratando. A meu ver, a crítica que sua obra merece é outra. Considero problemática sua capacidade de valorar devidamente a Gnose, discernindo o que há nela de positivo e o que é, de fato, negativo. Para Fedeli, a Gnose em seu todo é negativa - e isso é muito problemático. E a razão fica clara da leitura atenta de seus textos.
Como visto, Orlando Fedeli bem diagnostica que a Gnose, em sua acepção mais elevada, consiste em uma negação do valor da razão humana. Para o gnóstico, a razão humana é capaz de alcançar verdades menores, mas as mais elevadas estão reservada à Intuição Intelectual (ou o termo que se preferir). Para Fedeli, a razão humana aparece muitas vezes como a faculdade mais elevada, e é por meio dela que o ser humano, conduzindo-se retamente e auxiliado pela Graça, poderá chegar às verdades mais altas.
O grande problema é que, lendo Fedeli, uma inquietação profunda sempre me tomou: sob quais critérios Fedeli pode aceitar a santidade de uma Santa Teresa de Ávila ou de um São João da Cruz, por exemplo? Não deixaram eles também bem claro, em seus textos, que suas experiências místicas iam muito além das faculdades racionais? Não está ali também expressa a desconfiança em relação às faculdades naturais, como a razão, e a afirmação reiterada de que é no silêncio profundo dos sentidos - incluindo o racional - que Deus se revela?
São João da Cruz, em seu mais conhecido poema, narra como sua alma - a Amada - saía numa noite escura, com a casa sossegada, em direção ao Amado. Santa Teresa falava que a imaginação (e por imaginação se referia justamente aos pensamentos cotidianos ou à faculdade racional) é a louca da casa. São João Clímaco, séculos antes, escrevia que devemos fechar nossas portas interiores e “ascender a uma torre - se soubermos como fazê-lo - e observar como e quando, em qual número e de que maneiras, os ladrões tentam entrar e roubar nossas uvas”.2 As uvas, como o vinho, remetem também ao suprarracional - pois “perdemos a razão” quando estamos embriagados.
Tenho plena convicção de que Fedeli tinha as melhores intenções - e isso não é coisa pouca. Mas, infelizmente, ignorava por completo a possibilidade de haver uma boa Gnose: a seus olhos, afinal, a Gnose era o próprio mal.
3.2. Eric Voegelin
A abordagem de Eric Voegelin é diferente.
A enciclopédica obra de Voegelin é brilhante. Tem, claro, seus defeitos. Parece-me que, no tema da Gnose, o maior defeito foi diagnosticado por Fedeli: chamar de gnósticos movimentos que são, em verdade, panteístas, materialistas. Voegelin insistiu em chamá-los de gnósticos e, para isso, precisou se retorcer, e às vezes retorcer a própria teoria. Uma solução como a de Fedeli, de subdividir o Antropoteísmo em Gnose e Panteísmo, seria muito mais simples e elegante.
Voegelin, ao tratar da Gnose materialista, volta-se a Joaquim de Fiori (ou Joaquim de Flora), que concebia a jornada humana sobre a terra como um caminho evolutivo em três etapas ou três era: e era do Pai, marcada pela lei, a era do Filho, marcada pela redenção, e a era do Espírito Santo, marcada pela alegria plena aqui embaixo. Essa noção evolucionista em direção ao paraíso terreno estava, segundo Voegelin, na base de ideologias imanentistas como o Comunismo, o Liberalismo, o Nazismo etc. Sua construção é magnífica, mas não se pode ignorar que a Gnose, por definição, é contrária à matéria.
Acredito que o uso do termo por Voegelin acabou trazendo boa dose de confusão. Repete-se por aí que “o Comunismo é gnóstico” sem se compreender, em absoluto, o quão problemática é tal afirmação - e quem o diz apenas demonstra não saber de que se trata o Gnosticismo. Voegelin o sabia bem, e em sua obra procura desfazer mal-entendidos; mas muita confusão teria evitado se optasse por caminhos mais simples.
Estas linhas sobre Voegelin são importantes porque esclarecem que, a despeito de seu brilhantismo, seu uso do termo Gnose - frequente em sua obra, aliás - traz mais confusão do que elucidação. Em Fedeli, as coisas estão muito mais claras.
Mas, como nada é simples, curiosamente Voegelin não incorre no erro de Fedeli de desprezar o valor do suprarracional. Pelo contrário: é justamente nas experiências originais de transcendência que Voegelin entrevê a força capaz de fazer surgir uma grande civilização - ou um cosmion, um mundo ordenado a partir da transcendência. E esse conhecimento imediato, revelado sem intermediário a um Pontifex - uma ponte entre o acima e o abaixo -, é, no fim das contas, a própria Intuição Intelectual, ou a própria Gnose em sua acepção mais bela.
Wolfgang Smith e Clemente de Alexandria
A possibilidade de contato direto com verdades superiores por meios suprarracionais - ou a Gnose em sua acepção mais elevada, portanto - jamais foi negada pelas grandes tradições do mundo. Iluminação, Nirvana, Moksha, Samadhi, Fana, Satori, Bodhi, Devekut e Bodhi são alguns termos que, com variações, apontam à mesma realidade de união suprarracional, direta e imediata, entre o ser humano e a Verdade Suprema (assuma o nome que assumir nas diferentes tradições).
No Cristianismo recente, parece-me que um autor capaz de tratar do tema com precisão e discernimento foi Wolfgang Smith em seu Christian Gnosis: from Saint Paul to Meister Eckhart.3
Smith inicia seu livro defendendo justamente o que tenho procurado deixar claro: que existe uma Gnose problemática - aquela da negação pura e simples do mundo material, firme na crença de que vivemos em uma prisão demiúrgica, como expressa o mito - e uma boa Gnose. E a razão primeira para expressar tal convicção está na própria Bíblia: Smith demonstra que, das 29 vezes em que o termo grego gnosis aparece no Novo Testamento, apenas uma é em sentido pejorativo.
Smith prossegui citando os Padres da Igreja. Clemente de Alexandria afirmava que Jesus transmitira “a tradução secreta da verdadeira gnosis”, e Smith afirma que o Stromata é “um tratado sobre Gnose cristã, o primeiro - e também o último - deste tipo, um trabalho inigualável em autoridade e em alcance”.4 Noutro trecho, Smith torna a citar diretamente Clemente: “Mas eu afirmo que as almas gnósticas, que ultrapassam em grandeza de contemplação os modos de vida de cada hierarquia celeste…, abraçando a divina visão não em espelhos, mas na visão transcendentemente clara, absolutamente pura e insaciável que é privilégio das almas intensamente amantes”.5 E as citações prosseguem no livro, sempre destacando o uso do termo gnosis pelo Padre Grego. Smith, na sequência, fala em uma Cabala Cristã, cita Jacob Boehme e Meister Eckhart, mas as menções aos textos patrísticos - outros autores, como Gregório de Nissa, Máximo o Confessor e Orígenes são também citados - me parecem as mais importantes.
Especialmente oportunas são, porém - e reforço -, as citações de Clemente de Alexandria, por uma razão: foi Clemente um um famoso combatente do Gnosticismo! Elaine Pagels, conhecida autora sobre Gnosticismo - e em boa medida uma defensora do Gnosticismo -, salienta em seus textos justamente esse traço de Clemente de Alexandria. “Quando um bispo como Clemente [de Alexandria] ordena ao crente para ‘temer a Deus’ ou ‘confessar que tem um Senhor’…, o gnóstico pode ouvir tudo isto como a tentativa que faz o bispo de reafirmar as falsas pretensões do demiurgo, e dos seus representes terrenos, ao poder sobre o crente”, escreveu Pagels. “Na néscia afirmação do demiurgo de que ‘Eu sou Deus, e não existe nenhum outro’, o gnóstico podia ouvir a pretensão do bispo ao exercício de poder exclusivo sobre a comunidade”.6
Isso pode soar estranho. De um lado, Clemente de Alexandria era um gnóstico. De outro, era decididamente um combatente do Gnosticismo. Mas, se consegui até aqui expressar bem meu pensamento, não há estranheza alguma, pela razão simples de que o combate ao Gnosticismo não implica a rejeição da Gnose em si, em seu aspecto mais elevado, compreendida como conhecimento direto, imediato e suprarracional de realidades divinas. Clemente de Alexandria, ao contrário de muitos fervorosos e bem-intencionados católicos contemporâneos, era capaz de distinguir o que deve ser diferenciado, e não jogar o bebê - no caso, a mais elevada mística - junto da água suja das crenças em demiurgos e em prisões na matéria.
Gnose e Mística
O Gnosticismo, como heresia historicamente combatida, tem traços que vão muito além da promessa de contato direto com realidades superiores. O Gnosticismo crê que a vida é prisão, que nada de bom há na matéria, que o criador do mundo é um demiurgo malévolo ou que a salvação se reserva apenas a uma pequena elite espiritual. É curioso que, como sorrateira serpente, muitos desses traços se fazem ver justamente em grupos conservadores e pretensamente anti-gnósticos - ou não se veem a si mesmos, muitas vezes, como pequenas elites espirituais mergulhadas em um mundo tenebroso do qual devem fugir (recolhendo-se em pequenos grupelhos isolados ou fugindo às montanhas)?
Também é curioso que esses grupos acabam por rejeitar de todo a possibilidade de conhecimento suprarracional - presos que estão à razão, talvez por séculos de influência de uma determinada leitura tomista (não quero mergulhar fundo aqui por não ser minha área, mas lanço a ideia). A mística de uma Santa Teresa talvez seja tolerada porque, afinal, não cai bem rejeitar uma Doutora da Igreja - mas que aquele papo de Sétima Morada talvez lhes soe estranho, ou gnóstico… ah!, deve soar!
A mística é, porém, a terra dos mistérios. Não adianta tentar capturá-la com nossos sentidos. Não a compreenderemos com nossa razão - pois o que é inferior não pode compreender o que é superior (o que é a própria definição do termo “compreensão”…).
É curioso, por fim, que, no Evangelho de Lucas, o ponto de virada da história de Jesus - aquele a partir do qual as perseguições se intensificam - se dá justamente no momento final do capítulo 11, em que lemos: “Ai de vós, doutores da lei, que tirastes a chave da gnosis; vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam. E, dizendo-lhes ele isto, começaram os escribas e os fariseus a apertá-lo fortemente, e a fazê-lo falar acerca de muitas coisas, armando-lhe ciladas, e procurando apanhar da sua boca alguma coisa para o acusarem” (Lc 11:52-54).
No texto grego, o termo usado para "conhecimento" é γνῶσις (gnosis). Acredito que isso mereça reflexão.
Muita reflexão.
Conclusão: duas hipóteses
Temos, ao final, apenas duas hipóteses.
A primeira: como procurei defender, existe uma boa Gnose e existe um Gnosticismo diabólico - no sentido etimológico do termo, na medida em que, rejeitando a matéria, separa o mundo concreto do universo espiritual. A boa Gnose e o Gnosticismo diabólico são coisas muitíssimo diferentes - diametralmente opostas, eu diria. Cabe-nos discerni-las.
A segunda: a Gnose é, intrinsecamente e em todas as suas manifestações, um mal absoluto. Neste caso, todas as tradições de sabedoria do mundo e todos os termos já usados em referência a um contato suprarracional entre o homem e a Verdade - termos como Iluminação, Moksha, Samadhi, Satori etc. - são também, ipso facto, ilusórios e maus.
A meu ver, um mundo em que a segunda hipótese fosse real seria a verdadeira prisão demiúrgica.
FEDELI, Orlando. Antropoteísmo. São Paulo: Flos Carmeli, 2020, p. 69.
In: The Philokalia, vol. 4. Trad. G. E. H. Palmer et al. Londres: Faber and Faber, p. 200.
Jean Borella, frequentemente citado pelo próprio Smith, tem também boas contribuições, mas os escritos de Wolfgang Smith, um matemático e físico teórico, são mais diretos e claros - e talvez mais confiáveis também.
SMITH, Wolfgang. Christian Gnosis. Kettering, OH: Angelico Press / Sophia Perennis, 2008, pp. 15-17.
SMITH, Wolfgang. Christian Gnosis. Cit., p. 19.
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Porto: Via Óptima, 2006, p. 54.
Confesso que também tenho ficado confuso com a “polícia da gnose”. Acredito que haja uma certa confusão entre um conceito e um movimento gerado a partir dele, entre gnose e gnosticismo. Uma das teses que defendo é o cuidado que devemos ter com a excessiva racionalização da fé, afinal, não podemos crer que Deus só seja acessível aos extremamente letrados e eruditos, e não sou eu quem diz, é o apóstolo Paulo. Ele, que tinha uma enorme envergadura intelectual, considerou tudo como refugo, para ganhar a Cristo. Não só isso, ele disse em determinada e epístola que abordou aos irmãos daquela igreja não com sabedoria humana, mas com “demonstração do espírito e de poder”, para que a fé deles não se baseasse “em sabedoria humana, mas no poder de Deus.” Escrevi um artigo com este tema, em que detalho um pouco mais tais críticas à racionalização e intelectualização da fé, baseado principalmente nos escritos do apóstolo.
https://onavegador.substack.com/p/truques-milagres-e-fe-verdadeira
Seu texto é certeiro em identificar esse problema, e é mesmo essencial, quando consideramos as coisas espirituais e seus desdobramentos culturais e políticos, desfazer a generalização e reducionismo aplicados à gnose.