UNIVERSALISMO
Alguns dos mais interessantes pensadores cristãos da atualidade têm defendido o universalismo ou a apocatástase. Trata-se, em suma, da doutrina segundo a qual a ideia de um inferno eterno, ou de uma condenação eterna, não faz sentido em face da infinita bondade e misericórdia de Deus. Ao final, portanto, todos seriam salvos - mesmo aqueles condenados ao inferno e, no limite, mesmo o próprio diabo.
Entre os tais pensadores cristãos mais interessantes da atualidade que defendem essa doutrina, cito David Bentley Hart, teólogo ortodoxo, muitas vezes polemista, e autor de uma conhecida tradução do Novo Testamento (e autor de uma excelente newsletter no Substack: Leaves in the Wind), e John Milbank, talvez o principal expoente da interessantíssima ortodoxia radical e professor em diversas universidades, incluindo Cambridge.
É muito comum que a ideia de apocatástase seja quase automaticamente ligada a Orígenes. Mais comum ainda é o que costuma vir a seguir: Orígenes é o “pai de todas as heresias” etc. Pronto. A doutrina da apocatástase está derrogada liminarmente. Se se tenta insistir na viabilidade da discussão, vem logo o xeque-mate: Se todos serão salvos, a salvação operada por Jesus Cristo foi vã. A encarnação seria desnecessária. Agora sim: fim de conversa. Origenismo e apocatástase devidamente refutados, podemos seguir em frente, bons cristãos que somos.
Claro que quero problematizar tudo isso. Claro que quero jogar luzes e sugerir que D. B. Hart, Milbank e Orígenes devem ser levados com um pouco mais de seriedade.
Claro que - talvez inspirado pela verve polemista de D. B. Hart - este texto será polêmico.
David Bentley Hart apresenta um argumento muito simples a favor do universalismo - e, devo confessar, um argumento que me atinge profundamente. Ele basicamente diz que, sim, podemos nos esforçar o quanto for, arranjar as desculpas que quisermos, fazer os malabarismos linguísticos e teológicos que pudermos, mas a ideia de um Deus capaz de condenar seus filhos - ou de permitir que seus filhos condenem-se a si mesmos - a um inferno eterno é nauseante.
Logo no prefácio à edição mais recente de seu livro sobre o tema (That All Shall be Saved, sem tradução para o português), Hart narra a história de uma família que conhece: o pequeno filho, em algum ponto do espectro da Síndrome de Asperger, após retornar de uma missa em que o padre insiste na noção da eternidade do inferno, desenvolve transtornos psicoemocionais seríssimos. Pondera que aquela era, na realidade, uma reação perfeitamente normal diante de uma narrativa tão tenebrosa sobre a realidade da existência - apenas estamos, em geral, muito anestesiados para perceber a gravidade da situação. Ainda compara a vida a um enredo de terror, em que uma festa acontece num andar superior enquanto, abaixo, há um fogo eterno em que muitos que antes celebravam agora agonizam - e cujos gritos não podem ser ouvidos. As pessoas seguem em suas celebrações fingindo que nada acontece.
Como eu poderia discordar, caso queira ser sincero comigo mesmo? Como poderia dizer que não me incomoda profundamente pensar na possibilidade de um inferno eterno, com suas torturas odiosas que simplesmente não acabam jamais? Como não dizer que este sempre me pareceu um dos dogmas mais críticos que um católico deve aceitar - e se ainda não aceitou é porque, bem, não pensou sobre o tema tanto quanto deveria, ou não teve, por enquanto, a graça necessária para aceitá-lo?
Hart vai um pouco além - e eu sigo com dificuldade de discordar. Não apenas estaríamos diante do retrato de um Deus odioso; além disso, aqueles que defendem a ideia de um inferno eterno apresentam um elemento de sadismo. Há uma satisfação oculta: ele está condenado; eu não. Ou ainda pior: quase toda a humanidade está condenada ao eterno inferno; eu e alguns outros poucos fiéis - como eu - estamos salvos. Talvez até se duvide da própria salvação: como se pode saber, afinal? Mas, caso minha salvação, e a dos meus correligionários fiéis, se confirme, e caso a condenação dos bilhões de outros também se confirme - ah! - melhor não dizer, mas… - lá no fundo, aquela satisfação sádica, sugere Hart.
O amor pelos condenados acaba. Estranhamente, alguns defendem que essa seria também uma forma de amor. De minha parte, consigo entender um amor que, visando a um bem maior, aflige dor. Não consigo entender um amor que aflige dor eterna sem visar a qualquer bem maior - pois, no inferno eterno, apenas há a punição eterna, sem qualquer fim outro que não o sofrimento em si. Também por isso, Hart argumenta: há uma impossibilidade de compatibilizar o mandamento do amor ao próximo - para não dizer o do amor a Deus - com a doutrina da condenação eterna.
Ao longo do livro, seus argumentos são muito bem construídos, e também se dirigem àquela ideia mais difundida segundo a qual não é Deus que condena ao inferno, mas o próprio sujeito que, afastando-se definitivamente de Deus, condena-se a si mesmo. Talvez eu entre em detalhes em algum texto futuro, mas o que posso deixar assinalado é que o texto de D. B. Hart é bastante incisivo e convincente.
Já John Milbank, também seguindo a obra de Hart - pela qual se diz em grande medida influenciado, ao menos no que toca a este tema especificamente -, afirma que existem muitos sinais de que a condenação ao inferno não seria verdadeiramente eterna, mas se daria por muito, muito tempo.
Acrescenta trazendo uma conhecida passagem da Primeira Carta aos Coríntios:
E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos. (1 Coríntios 15:27,28)
De que outra maneira Deus será tudo em todos? - pergunta Milbank, sugerindo que a resposta está na apocatástase: uma doutrina, como também defende, “profundamente ortodoxa”. Filosoficamente, afirma que, se o mal é ausência ou não-ser, seria impossível uma vitória eterna sobre o bem - o que é a própria definição de um inferno eterno: o mal, ao menos em alguma medida, vencendo eternamente o bem; o não-ser prevalecendo eternamente sobre o ser, em algum lugar da existência.
Claro que o assunto é imensamente polêmico. Não faltam críticas ao universalismo - seja de Orígenes, Milbank ou Hart. Mas também (eis o outro lado) não faltam defensores: aparentemente, há fortes indícios de que São Gregório de Nissa era universalista, bem como - embora aqui a controvérsia seja maior - São Máximo e outros Padres da Igreja. Este texto me pareceu bastante esclarecedor.
Mas eu, não satisfeito com essas polêmicas, quero polemizar ainda mais.
REENCARNAÇÃO E APOCATÁSTASE
E que maneira melhor de gerar polêmicas do que tirando da cartola ninguém menos do que o nosso agente de islamização do Ocidente?
E mais do que isso: não apenas quero citar René Guénon, como também mencionar algumas de suas ideias sobre a reencarnação - que são, por sua vez, baseadas nos comentários de Shankaracharya aos Brahma-Sutras (como afirma o próprio Guénon em O Homem e seu Devir segundo o Vedanta).1 Farei isso por uma razão: foi a partir da obra de Guénon que deparei com uma ideia de reencarnação bastante diferente daquelas mais disseminadas. E que pode nos ajudar nesse tema tão difícil.
Utilizarei o termo reencarnação, e não outros, apenas para facilitar o desenvolvimento do raciocínio. Fique desde logo assentado, contudo, que Guénon apenas utiliza o termo em conotação negativa, criticando-o.
Vamos adiante (caso o leitor ainda queira me acompanhar nessa, claro).
Um dos argumentos centrais levantados pelos cristãos contra a reencarnação é bastante conhecido: se a reencarnação sugere uma sucessão evolutiva de encarnações, numa trilha de progresso da alma (e o próprio Cristo é frequentemente visto, nesta perspectiva, como uma “alma evoluída”), essa evolução progressiva das almas torna desnecessária a própria missão de Jesus entre nós. Afinal, se as almas evoluem necessariamente, qual seria o sentido do sacrifício de Jesus Cristo, por meio do qual, segundo até mesmo as noções mais básicas de Cristianismo, quis salvar-nos? Ora, se evoluímos por meio de sucessivas encarnações, desnecessária foi a vinda de Cristo, e ainda mais desnecessária sua morte na cruz.
Acontece que, lendo com maior rigor algumas doutrinas – ao menos segundo a perspectiva apresentada por Guénon e baseada em Shankaracharya (e fale-se o que for sobre Guénon: O Homem e seu Devir é um livro brilhante em seu propósito de condensar doutrinas vedânticas muito pouco acessíveis) –, lendo, como dizia, com maior rigor algumas doutrinas reencarnacionistas, novas abordagens se tornam necessárias. Este texto não quer defender ou rechaçar a ideia de reencarnação, mas apenas apresentá-la sob essa outra perspectiva. E, surpreendentemente, talvez seja uma perspectiva muito menos incompatível com o Cristianismo do que as ideias reencarnacionistas mais difundidas (sobre gente que “foi cachorro”, “foi um soldado romano” ou “foi um faraó egípcio” na encarnação passada).
Pois bem. Na leitura de Guénon, o que acontece é que entendemos muito mal em que de fato consiste a reencarnação, numa perspectiva mais ampla. De fato, somos levados a pensar que o reencarnacionismo de uma tradição oriental milenar é o mesmo divulgado pelo espiritismo, por seitas ocultistas ocidentais de um punhado de décadas ou séculos atrás, ou por versões adocicadas, descontextualizadas, desvirtuadas e/ou ocidentalizadas dos ensinamentos originais.
Para Guénon, as coisas são bem diferentes. Defende, por exemplo, que uma mesma alma simplesmente não pode ter duas experiências num mesmo “universo”, ou num mesmo “ciclo cósmico”, ou num mesmo estado de ser. Por isso, critica tanto a reencarnação tal como normalmente compreendida.
Mas isso, claro, exige explicações adicionais. E alerto o leitor: muito do que escreverei são livres apropriações e implicações - a meu ver possíveis - das ideias guénonianas.
Na perspectiva aqui adotada, o todo da existência transcende infinitamente o nosso ciclo cósmico particular.
Na imagem poética hindu, cada ciclo cósmico tem início a cada abrir de olhos de Brahma, e se encerra a cada vez que fecha seus olhos. Acontece que, como dito, cada um desses ciclos tem uma duração inestimável, e equivale, verdadeiramente, a uma Criação absolutamente autossuficiente: um Manvantara, segundo as contagens mais difundidas, teria nada menos do que 4.320.000.000 anos - seja lá o que isso signifique, literal ou simbolicamente (e não, não acho que devamos tomar esse tipo de número literalmente).
Na realidade, as coisas são ainda mais complexas: cada abrir de olhos de Brahma inicia um Kalpa; cada Kalpa tem, por sua vez, 14 Manvantara, com seus bilhões de anos, subdivididos, por sua vez, em 71 ciclos de Yugas ou Maha Yugas (e cada Maha Yuga é composto de quatro Yugas).
A cada nova Criação, uma história épica se inicia. São criados novos céus e novas terras; são criados os astros, os mares, os anjos, os homens... E, nesta perspectiva, cada alma individual é, no devido tempo, também criada, tendo seu princípio quando sua vida concreta se inicia.
Compreendamos o argumento: a alma apenas pode ter uma existência humana (ou num estado de ser equivalente: não desejo explorar aqui a obra de Guénon para além do necessário à compreensão do que procuro expor) uma vez. Se se pode falar em reencarnação (embora Guénon, ao que me parece, jamais utiliza o termo neste sentido; de qualquer forma, a ideia está ali, mesmo que implícita), é para fazer-se referência a uma outra existência, em outro estado de ser, após uma nova criação, dentro de um novo ciclo cósmico, no seio de uma nova história épica, findo o qual haverá um novo destino às almas que ali viveram: talvez uma nova “encarnação” se dê num novo Kalpa, num novo Manvantara ou, na melhor hipótese (talvez a mais provável), num novo Maha Yuga. Afinal, ao falarmos em “ciclo cósmico”, podemos fazer referência a qualquer um dos três - pois os três são, cada qual à sua maneira, ciclos cósmicos, ainda que de ordens de grandeza muito diversos.
E, em cada ciclo, a alma não liberta, presa aos ciclos da vida e da morte, será consumida, imersa em mares de sofrimento; ao final, será dilacerada, dissolvida, e retornará inconscientemente a Brahma (uma “reintegração em modo passivo”, diz Guénon).
[ Nagarjun Kandukuru. The wheel of life. - Bangalore, India ]
Se admitirmos a hipótese de que a condenação ao inferno não significa uma infinidade absoluta de tempo, mas um tempo inimaginavelmente longo, como defendem Hart e Milbank, essas divagações sobre a reencarnação e a doutrina dos ciclos cósmicos não se tornam de todo descabidas.
Num nível profundo, talvez haja mesmo uma aproximação possível entre a noção de um inferno indefinidamente longo e a noção de um ciclo indefinidamente longo que, porém, encontra seu termo. O girar da Roda de Samsara implica, à sua maneira, uma total dissolução do “eu”, e uma dissolução que - a não ser para os libertos, cuja “dissolução”, porém, é coisa completamente outra - não parece ser agradável. A imagem de um fogo nem sempre é usada no Oriente - ao contrário do Cristianismo, em que aparece sobretudo como imagem poética, metafórica: símbolo ígneo apontando a uma realidade espiritual indescritível a não ser simbolicamente -, mas está lá, implícita, uma história de desintegração dolorida, ardente, daquilo que imaginávamos ser.
Afinal: mesmo que haja reencarnação, eu não reencarnarei como Bruno. Meu complexo psicossomático será necessariamente aniquilado. Não apenas meu corpo, mas minha alma será dilacerada. E esse processo bem pode ser verdadeiramente infernal.
Viver essa desintegração por um período indefinido de tempo, sofrendo as mais lancinantes dores na alma, até que reste apenas uma centelha misteriosa, provavelmente inconsciente, de nós mesmos: eis uma perspectiva abissalmente desagradável. Infernal. Eternamente infernal.
Quero defender a ideia de que tudo se trate, talvez, de uma questão de zoom – de fato, uma questão de perspectiva.
Dentro do nosso ciclo cósmico – que, afinal, é verdadeiramente tudo o que realmente nos importa –, a reencarnação é uma ideia decididamente anticristã. Fomos criados, nos é destinada uma vida, e ao final seremos julgados. Caso nos tenhamos aproximado suficientemente de Deus e da Verdade, atendendo à nossa pessoal vocação à Santidade, e realizemos a união mística com Deus, o Paraíso Eterno será o destino definitivo das nossas almas (aqui, sim, podemos falar em uma eternidade-eternidade, sem qualquer ressalva). Caso, porém, tenhamos fracassado na missão e não nos arrependamos o suficiente, ou não contemos com orações suficientes, o nosso destino é o Inferno eterno.
Agora, pensando novamente nos ciclos cósmicos, podemos ponderar que este Inferno talvez seja “eterno” dentro do nosso ciclo (o que, como dito acima, podemos interpretar como dentro de nosso Maha Yuga), mas, pela infinita misericórdia de Deus, também talvez possa, dentro de uma perspectiva mais ampla, encontrar seu termo.
Talvez, como também ressalva Guénon, mais apropriado seria falar-se em perpetuidade, em vez de eternidade. Talvez, como sugere Milbank, não seja efetivamente eterno no sentido de uma duração infinita, mas no sentido de uma duração inimaginavelmente longa (o que, convenhamos, é também uma perspectiva suficientemente ruim para que queiramos ao máximo evitá-la).
Quero dizer: todas as visões de Santos sobre o caráter terrível do Inferno, e sobre a realidade do Inferno, são verdadeiras: é um destino para o qual os piores adjetivos são insuficientes, e um destino que se prolonga por um tempo verdadeiramente infindável. Eis, porém, o paradoxo supremo: talvez, se tivermos em mente uma perspectiva mais ampla, mesmo este tempo infindável pode conhecer, pela misericórdia divina, seu fim – que corresponde ao fim do ciclo cósmico em si. E, às almas eternamente condenadas, após sua infernal dissolução, é conferida, por pura e infinita misericórdia, a oportunidade de serem recriadas, para uma nova existência, num outro estado de ser, em um novo ciclo épico e inimaginavelmente longo, ao fim da qual podem ser enfim salvas – ou novamente condenadas a um tempo perpétuo de tormento e dissolução.
Em tudo isso - na vida longe de Deus em nosso ciclo, na dissolução infernal, na nova criação ainda longe de Deus - seguirão, ainda, presas ao ciclo, a Maya, à ilusão de que o mal pode ser mesmo eterno. Quantas vezes mais serão dilaceradas até a apocatástase? Por quantos ciclos mais de inferno eterno passarão?
Claro que o sacrifício crístico mantém íntegro seu inestimável valor.
Dentro do nosso ciclo cósmico – que, afinal, é tudo o que verdadeiramente nos importa, e é mesmo o limite dentro do qual podemos ver e viver (e devo mesmo admitir: até as especulações fora desses limites, como as que faço neste texto, podem redundar apenas em confusão, em vez de esclarecimento) –, somos criados, caímos e precisamos desesperadamente de redenção, sob pena de condenação eterna. Jesus Cristo vem a nós e por nós se sacrifica para que sejamos salvos. Eternamente salvos.
E se a misericórdia divina, em seu abrir e fechar de olhos, tiver seus planos secretos para as almas condenadas – não sua salvação pura e simples, mas, após uma perpetuidade de tormentos, um novo ciclo e uma nova oportunidade –, disso nada poderemos saber. Disso não se ocupa o Cristianismo, nunca se ocupou e talvez nem deva se ocupar. Mas, por outro lado, não me parece que tal hipótese seria (como o é, efetivamente, a hipótese reencarnacionista mais banal e disseminada em nossos tempos) fundamentalmente anticristã.
E o valor do sacrifício crístico, estendendo-se indefinidamente “por todos os séculos” e por todas as eras, talvez seja justamente o que assegura a apocatástase (aliás, talvez haja verdade tanto na fórmula eucarística rezada ao longo dos tempos - o sangue derramado “por vós e por muitos” - quanto na criticada reformulação recente da missa católica, em que o sangue é derramado “por vós e por todos”: uma questão de perspectiva).
Talvez o universalismo trace mesmo, a nossos olhos, novos contornos de Deus. Talvez saliente sua infinita misericórdia, de fato. Mesmo que leve incontáveis Maha Yugas, ou mesmo todo o ciclo de 14 Manvantaras (ou seja: um Kalpa), a apocatástase virá.
Eu compreendo perfeitamente que haja resistências essa visão. Primeiro, por ser muito intrincada. Segundo, porque talvez precisemos, mesmo, de uma perspectiva mais pungente e ameaçadora de um inferno eterno para que aceitemos tentar dar algum jeito em nossas vidas tortas (o ser humano em geral, como já bem o demonstram os estudos de Lawrence Kohlberg, por exemplo, estão mesmo em um nível de desenvolvimento moral em que precisam de regras firmes, punições enfáticas etc., e talvez sempre tenha sido assim). Não é desprezível o risco de que eventual disseminação de uma ideia de reencarnação - tão sujeita a mal-entendidos - faça-a ser encarada como verdadeira carta-branca para que, nesta vida, façamos hedonisticamente o que quisermos: haverá outras chances, afinal!
Terceiro: bem, o que importa, de fato, para nós, uma realidade que apenas terá sentido dentro de sabe-se lá quantos eons? Quarto - porque, afinal, não é nenhuma mentira falar-se num inferno eterno; apenas talvez não seja a verdade mais absolutamente plena (de que provavelmente não precisamos mesmo).
De fato, é bastante possível que o universalismo apenas leve mais e mais gente a desprezar, em absoluto, o valor da bondade e de uma vida que não seja puramente hedonismo e egoísta.
Ao mesmo tempo, é possível complexificar a discussão. Milbank e Hart afirmam, com bastante força, que a doutrina do Inferno eterno é o que mais afasta as almas sãs do Cristianismo. Também não podemos negligenciar o potencial sadismo que emerge dessa divisão tão enfática entre justos e condenados, nem as repercussões psicológicas trágicas dessa visão - como a petrificação do coração, que sempre deve resguardar alguma ressalva quanto a amar o próximo; ou as quase inevitáveis projeções, pois o crente passa a ver no outro o que não pode absolutamente admitir em si mesmo (pois significaria admitir que provavelmente lhe será reservada uma eternidade literal de tormentos). Talvez eu aprofunde esses pontos em algum texto futuro; por ora, menciono um breve trecho do livro de D. B. Hart:
It was not merely peculiarity of personal temperament that prompted Tertullian (c. 155–c. 240) to speak of the saved relishing the delightful spectacle of the destruction of the reprobate, or that prompted Peter Lombard (c. 1096–1160) and Thomas Aquinas (1225–1274) to assert that the vision of the torments of the damned will increase the beatitude of the redeemed (as any trace of pity would darken the joys of heaven), or that prompted Martin Luther (1483–1546) to insist that the saved will rejoice to see their loved ones roasting in hell. None of these good pious souls was doing anything other than following the only poor thread of logic he had to guide him out of a labyrinth of impossible contradictions; the sheer enormity of the idea of a hell of eternal torment forces the mind toward absurdities and atrocities.
Temos, a meu ver, levando em conta perspectivas verdadeiramente tradicionais diversas, algumas hipóteses, em linhas gerais, para o destino das almas. E só uma pode ser verdadeira:
Há um julgamento final apenas, com inferno e paraíso verdadeiramente eternos;
Há um julgamento final apenas, e todos serão salvos;
Há diversos ciclos, no perpétuo girar da Roda da Vida e da Morte, e “paraíso” e “inferno” são apenas estados passageiros. A única libertação é a tomada de consciência da ilusão de Maya e a dissolução consciente no Uno;
Ao fim de cada ciclo, há um julgamento final, e o paraíso é eterno. Já o inferno, com suas diversas gradações (pode haver diferenças abissais entre os círculos mais baixos e os mais “altos”, bem como sub-ramificações), é perpétuo dentro do próprio ciclo, mas, pela misericórdia divina, encontra seu termo. A apocatástase ou salvação eterna é destino final das almas, ainda que demande incontáveis éons.
Claro que cada uma dessas hipóteses tem suas minúcias. Mas não sei se há uma quinta hipótese fundamentalmente diferente das quatro acima.
Também não o sei se as implicações do universalismo de um Orígenes, um Hart ou um Milbank possam mesmo levar a todas essas aberturas a ciclos cósmicos e afins. De qualquer forma, D. B. Hart afirmou mais de uma vez que a ideia de reencarnação faz sentido dentro do contexto apropriado. Não sei exatamente o que quis dizer com isso - mas é, certamente, uma resposta muito diferente da negativa pura e simples da possibilidade de reencarnação (resposta cristã mais comum, evidentemente). Falamos, afinal, de um profundo estudioso de religiões comparadas, que não esconde seu encanto, em especial, pelas tradições orientais.
Num dos trechos do livro, Hart sinaliza que, ao final, mesmo alguém como Hitler acabará “sendo purgado de seus pecados e salvo, não importa quantos éons de inconcebíveis dores de purificação no inferno isso possa levar” - e a menção a éons permite algumas suposições, especialmente porque, páginas adiante, afirma que um éon pode ser compreendido não apenas como um longuíssimo período de tempo, mas como uma ‘dispensação’. Mas mais importante: noutro trecho, as ideias de Hart parecem especialmente alinhadas a tudo o que escrevo aqui:
For myself, I prefer a much older, more expansive, perhaps overly systematic approach to the seemingly contrary eschatological expectations unfolded in the New Testament—an approach, that is, like Gregory of Nyssa’s or Origen’s, according to which the two sides of the New Testament’s eschatological language represent not two antithetical possibilities tantalizingly or menacingly dangled before us, posed one against the other as challenges to faith and discernment, but rather two different moments within a seamless narrative, two distinct eschatological horizons, one enclosed within the other. In this way of seeing the matter, one set of images marks the furthest limit of the immanent course of history, and the division therein—right at the threshold between this age and the “Age to come” (‘olam ha-ba, in Hebrew)—between those who have surrendered to God’s love and those who have not; and the other set refers to that final horizon of all horizons, “beyond all ages,” where even those who have traveled as far from God as it is possible to go, through every possible self-imposed hell, will at the last find themselves in the home to which they are called from everlasting, their hearts purged of every last residue of hatred and pride. Each horizon is, of course, absolute within its own sphere: one is the final verdict on the totality of human history, the other the final verdict on the eternal purposes of God.
Enfim, não descarto a hipótese de que ele concordaria, ao menos em linhas gerais, com o que escrevi - ainda que provavelmente não aprove muito meu recurso a Guénon: Hart é bastante crítico do tradicionalismo (especialmente schuoniano, diga-se). Mas este é um texto sem qualquer pretensão acadêmica, num blog pessoal. Hart já é muitíssimo combatido por defender o universalismo, e é prudente, de fato, que não vá ainda além, tentando delinear em maiores detalhes como a apocatástase se dará. Em seu livro, escreve, entre outras coisas, que talvez falte, a nossas formulações escatológicas ocidentais, uma maior dose de imaginação, mas não explora ou sugere outras formulações mais imaginativas.
No Oriente, não há dúvida de que temos uma doutrina muito mais rica e elaborada. Não quero dizer, com isso, que tudo ali seja verdadeiro; ao mesmo tempo, também não consigo simplesmente descartá-la. Sei, claro, que sincretismos e sínteses religiosas são, por sua natureza, muito perigosos, e frequentemente deletérios. Cada tradição tem sua gramática e seus símbolos. Mas, neste assunto especificamente, parece-me, sim, que há possibilidades de um diálogo muito promissor - e já escrevia Guimarães Rosa: “Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para ver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”.
Para um aprofundamento no tema - as visões de Guénon, Coomaraswamy e Schuon sobre reencarnação, contrastadas com as visões hindus tradicionais -, há uma sequência brilhante de textos de autoria de Giuliano Morais. O último texto da sequência - em que há links para os anteriores - pode ser acessado por aqui: https://devaarcana.blogspot.com/2018/01/as-doutrinas-de-renascimento-conclusoes.html